nem o tempo passa
CAROLINE HANCOCK
As «construções» e os «desenhos», as notas e fotografias de Carlos Nogueira estão permanentemente em acção, dialogando entre si. A cronologia e as datas não são relevantes. O fluxo da forma e do pensamento atravessa o tempo para trás e para diante, utilizando repetidas vezes certos materiais (ferro, vidro, betão, pedra, madeira) ou aplicando metodologias numa relação simbiótica com situações mutantes, paisagens, edifícios ou corpos. A sua busca sem‐fim combina o industrial e o elemental, o transparente e o opaco, o que se abre e o que resiste, o dentro e o fora, planos e volumes, leveza e peso. O preto e o branco, as tonalidades de cinzento e castanho constituem o núcleo do seu espectro, com restos ou desenvolvimentos pontuais que usam a cor — e a natureza.
Incompreensivelmente, é menos conhecido na cena internacional do que alguns dos seus pares, apesar de alguns projectos notáveis no estrangeiro — Brasil, Itália, Suíça —, de ter representado Portugal na Bienal de Veneza de 1986 e de uma intervenção escultórica de relevo na The Economist Plaza em Londres em 1998, para referir apenas alguns. As suas instalações site‐specific e muitas das suas formas artísticas são, de um modo geral, extremamente elegantes, exactas, contidas, abstractas, geométricas, aproximando‐se do Minimalismo, da Arte Conceptual, da Arte Povera e da Land Art. Com alguma imaginação, seria possível e útil traçar linhas de afinidade com Robert Rauschenberg e as assemblages, Donald Judd pelo geometrismo e o rigor, Richard Serra pela monumentalidade e o envolvimento, On Kawara pelo uso de postais, com Michelangelo Pistoletto e as pinturas sobre espelho, mas também Carl Andre, Dan Graham e Cy Twombly, entre outros.
Os primeiros dezassete anos da vida de Carlos Nogueira em Moçambique são um tempo de memórias muito vivas. O artista diz muitas vezes «nasci onde o vento sopra de outra maneira», e lembra o mar, o sol, o céu, a floresta, os cheiros, o tempo, a tolerância, o rigor, a vastidão, as relações, a tranquilidade. Estas impressões e a sua aguda consciência da especificidade de cada lugar parecem emergir continuamente do seu trabalho com elegância, requinte e simplicidade. Foi aí que começou a desenvolver a sua elevada receptividade ao estudo do espaço: «Aprendo com cada lugar, com a direcção do vento, as pessoas que passam, a inclinação da montanha». Num texto de um catálogo de 2002, o crítico de arte Caoimhín Mac Giolla Léith descreve a obra de Carlos Nogueira como «plenitude do ver»1. Ver de múltiplas perspectivas é essencial.
O interesse de Carlos Nogueira pelas pessoas e pelos lugares é também central na relação profunda que estabelece com a arquitectura e o seu ensino. Trabalhou com arquitectos como José Adrião, Manuel Aires Mateus, Maria de Lurdes Janeiro, José Manuel Fernandes, Ueli Krauss, Manuel Lacerda, Miguel Nery. Esteve ligado à exposição de homenagem ao arquitecto Luís Cristino da Silva (1896‐1976) na Fundação Calouste Gulbenkian em Lisboa, em 1998, e desenhou um painel mural exterior em mármore (2005) para a fachada do Centro Nuno Belmar da Costa, para pessoas com
paralisia cerebral, situado na área residencial que Cristino da Silva, Falcão e Cunha e Gonçalo Ribeiro Telles projectaram nos anos cinquenta, como parte de um inovador plano urbanístico em Nova Oeiras.
Ao organizar duas exposições simultâneas no Outono de 2015 em lugares distintos de Lisboa, Carlos Nogueira fez depender a escolha das obras de uma cuidada atenção a cada espaço, à sua forma e ao modo de o sentir. O diálogo que se estabelece entre os dois projectos é notável, criando efeitos de espelhamento através da cidade, apesar da absoluta especificidade de cada um. As exposições integram um pequeno poema, diferente em cada uma delas, que propõe um conjunto significativo de palavras e ideias, funcionando como um portal para entrar na obra, permanecendo no espírito à medida que se vai deambulando pela exposição. Ambos têm a ver com o corpo e a sua sensualidade. Levam o espectador/leitor a abrandar o ritmo e a prestar atenção à envolvência, construída ou imaginada, no tempo presente. Carlos Nogueira dá indicações pessoais que propõem incorporar espaço e tempo através dessas palavras e das obras, de um modo que evoca as suas oferendas de ramos de flores de papel em acções de rua nos anos oitenta. Na galeria 3+1 ‐ Arte Contemporânea a figura é fugidia. Na Appleton Square, apesar do ritmo intenso, o seu perfil discreto quase passa despercebido.
O título da primeira exposição — nem o tempo passa — é um verso de um outro poema do artista que muitas vezes surge nos seus catálogos2. Esta forma de expressão habitual oferece dimensões complementares. A linguagem e as suas tonalidades particulares são materiais evocativos.
A permanência é uma palavra com grande significado no vocabulário do artista, pela sua continuidade e fluidez. Carlos Nogueira explica que gosta de viagens que começam e nunca acabam. O seu pensamento atravessa diferentes períodos de um modo permeável; algumas séries regressam repetidamente sob formas modificadas. Nada é necessariamente fixo, mas procura‐se um máximo de qualidade e uma potencial permanência. O que já existia ganha novos significados.
O mais simples pormenor é, de facto, importante. As horizontais, as verticais e várias linhas oblíquas confluem, divergem e pontuam os espaços. Nestas composições entram em jogo a geometria clássica, o design e o saber arquitectónico.
As montagens são impecáveis, tão rigorosamente estudadas e pensadas como as suas obras de arte. A 3+1 ‐ Arte Contemporânea é uma galeria longa e estreita que Carlos Nogueira ocupou com duas construções escultóricas que incluem a obra construção horizontal (2015), que se desenvolve em seis partes num conjunto que perfaz quatro metros, situado do lado esquerdo da sala. Essas partes são compostas como janelas em molduras metálicas montadas sobre a parede — incorporando portadas descobertas e recuperadas e conjuntos de duas chapas de vidro industrial, uma espelhada e a outra fosca. Uma construção semelhante, na parede oposta, desta vez formando um díptico, desenho esquivo (2015), mostra um desses elementos de vidro, oblongo, assente no chão em posição oblíqua/inclinada, quebrando a simetria sem deixar de se integrar de forma harmoniosa no equilíbrio global da obra e da sua intenção relacional. Como um trompe l’œil, a delicada estrutura escultórica de um material que parece madeira ardida — desenho de casa geminada com jardim aberto (2015) — apresenta‐se, de facto, revestida por uma fina camada de papel com desenhos a carvão. Este esboço de projecto de uma casa sugere igualmente abertura e natureza.
A exposição da Appleton Square distribui‐se por dois níveis — o rés‐do‐chão, com tecto alto e luz natural, e uma galeria mais fechada, na cave. Aqui, o artista deu à exposição o título o peso das coisas. leveza e claridade, num jogo alusivo às condições dos dois espaços. As seis prateleiras pintadas de branco esmaltado de construção em branco (2015), suporte de um desenho a carvão abstracto e ritmado com distorção espacial, estão levemente suspensas acima do chão, com espaços entre si. Dois cestos de ferro galvanizado (contentores de produtos) pairam lado a lado como gaiolas vazias prestes a levantar voo. Abundam os duplos. De facto, duas peças suspensas intituladas construção vertical têm uma altura de cerca de 2,60 metros, e parecem mais alongadas e orientadas para cima quando comparadas com as que lhes correspondem na Galeria 3+1. Apesar do recurso a materiais pesados, as peças flutuam quando observadas de frente e revelam camadas sobrepostas de uma complexidade calculada — são naturais, manufacturadas, recuperadas.
Algumas das portadas foram pintadas de novo, outras deixadas tal como foram encontradas, com lascas, mossas, manchas e tonalidades de cor levemente degradadas. Estão dispostas a uma pequena distância da parede, permitindo assim que sombras expressivas acrescentem algo a esta mise en abyme. As variações da profundidade de campo, da transparência, da ocupação do espaço ou dos intervalos em cada uma destas «construções» alteram totalmente o efeito final. Manufactura e bricolage, o velho e o novo, materiais ricos e pobres misturam‐se e combinam‐se em perfeita coexistência.
Carlos Nogueira junta «coisas» e fragmentos durante anos, até eles encontrarem o seu lugar como obras de arte no seu trabalho. Poderemos compará‐lo a Oscar Wilde, que dizia que passava a manhã a colocar uma vírgula no seu lugar e o serão a retirá‐la? Esta citação, extraída de uma carta de Michel Leiris à mulher, Zette, em 1931, ecoa na atenção maior que Carlos Nogueira dá ao processo experiencial, e não ao ponto final da obra: «O que me interessa não é já de modo algum o objectivo, mas a busca, simplesmente enquanto busca. O oceano de poesia em que estamos mergulhados acaba por ser de tal modo rotineiro que já nem lhe damos atenção [...]. Tudo é visto em função do trabalho em curso, e qualquer cena observada será, antes do mais, pretexto para tirar notas e fazer fotografias.»3
Uma caixa de madeira anteriormente dividida em compartimentos com determinadas funções, e com garatujas de números de uma classificação lógica antiga, transforma‐se em casa comprida (díptico) (1985‐2015). As noções de habitat, lar, acolhimento e uma certa busca de conforto marcam as obras — e prolongam as ligações ao corpo. Em ambas as exposições o artista suspendeu dois «desenhos», caixas de madeira com áreas diferentes, espaços ou lugares (três, quatro, cinco ou sete), com vista a experiências diversas, individuais ou múltiplas. Colmeias para a vida. A presença da parafina confere‐lhes um certo calor, quase sagrado, e acentua o carácter das obras de Carlos Nogueira como peças de contemplação, com diversos graus de presença e materialidade, em certos casos táctil. Perto do sublime, mas nunca desejando chegar a esse grau de pureza.
«[...] estou tentando captar a quarta dimensão do instante‐já que de tão fugidio não é mais porque agora tornou‐se um novo instante‐já que também não é mais. Cada coisa tem um instante em que ela é. Quero apossar‐me do é da coisa.»4
As citações do artista provêm de uma conversa telefónica em Junho de 2015.
tradução do original
MARIA ETELVINA SANTOS
1
Caoimhín Mac Giolla Léith, «Enhancing Vision: Sculptural Works by Carlos Nogueira», in: Carlos Nogueira. a ver, Fundação Calouste Gulbenkian, Centro
de Arte Moderna José de Azeredo Perdigão, Lisboa, 2002, p. 30.
2
Carlos Nogueira assume, em geral, a concepção dos seus catálogos. Este poema foi publicado em várias ocasiões, por exemplo no catálogo atrás
referido, p. 19:
«os ventos sopram do mar
aumentam aumentam
da natureza das coisas tudo acaba
nem o tempo passa»
3
Carta de Michel Leiris a Zette, 27 de Outubro de 1931, presente na exposição Leiris & Co, no Centre Pompidou de Metz, Verão de 2015.
4
Clarice Lispector, Água Viva. 1.a edição: 1973. Citado da 5.a edição, Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira, 1980, p. 9.