Duas casas quase iguais
JOAQUIM MORENO
Em 1922 encomendei pelo telefone cinco pinturas em esmalte para porcelana a uma fábrica de sinalética. Tinha a tabela de cores da fábrica à minha frente e desenhei as minhas pinturas em papel quadriculado. Do outro lado da linha, o supervisor da fábrica tinha o mesmo tipo de papel, dividido aos quadrados. Anotou as formas que ditava na posição correcta. (Era como jogar xadrez por correspondência.) Uma das pinturas foi executada em três tamanhos diferentes, de modo a poder estudar as subtis diferenças nas relações cromáticas causadas pela redução e pela ampliação.
Lazlo Moholy-Nagy, in Resumo de um Artista, p. 79-80
1
ESCADA, 1
Sim, a coisa poderia começar assim, aqui, deste modo, de uma maneira um pouco pesada e lenta, nesse lugar neutro que é de todos e de ninguém, onde as pessoas se cruzam quase sem se ver, onde a vida do prédio ecoa, longínqua e regular.
Georges Perec, in A vida, modo de usar, p. 19
Nunca vi as pinturas ao telefone de Lazlo Moholy-Nagy, nem percorri toda a literatura potencial dos romances arrumados como puzzles no número 11 da rua Simon-Crubellier, mas não consigo alhearme da sua intensidade transformadora, de todo este antes da obra que é parte da obra, deste formato definido antes da forma, deste quase fazer que já é fazer. Destas duas casas quase iguais de Carlos Nogueira vi a matéria de uma e o projecto de outra. O quase que as iguala partilha desta natureza das coisas que existem nas descrições, nas restrições e nas ausências, numa aproximação limiar à arquitectura.
Dizer casa comprida com árvore, ou casa comprida com luz, é de facto projectar com o nomear, num gesto que não é apenas nome, título ou descrição. Nomear é assim projectar, não é chamar por um nome que existira antes da sua evocação, é projectar o nome na coisa, é inventá-la com o nomear; é
quase um casar com a casa. E o título, o que vem a seguir a projectar um nome, é específico mas partilhado, as duas casas são quase iguais, são as duas compridas. Mas o adjectivo nem pertence às casas nem as esclarece, apenas organiza a nossa posição diante delas, apenas nos diz que a frente da casa é
o comprimento, não a largura, que se fosse frente faria as casas curtas. O título projecta inversamente, projecta em volta das casas. Um último gesto deste projectar/nomear é a descrição, a imposição de um atributo que domestique, a descrição de um conteúdo que construa o objecto como casa. Com árvore
ou com luz, estas casas são quase iguais às outras, ou o seu projecto é capaz de produzir este plano de convergência entre estas casas e as outras, permitindo habitar estas com o que sabemos das outras.
As casas quase iguais permitem transplantar perguntas, habitá-las com as perguntas que fazemos às outras casas: como são? Que forma têm? Que limites têm? De que são feitas ou construídas? De que lado está o fora e o dentro? Que energia consomem? Em que tempo vivem? Onde estão? Que romances escondem? Que ausências disfarçam? Que luz as ilumina? Ou como o reflexo de uma na outra as constitui, as sustenta, as habita? Porque o lugar dos encontros onde as pessoas se cruzam quase sem se ver, onde a vida do prédio ecoa, longínqua e regular, está, em comum, ausente.
A matéria de uma das casas é a luz, ou melhor, a luz é o que anula a matéria da casa, que a faz levitar.
Quando a matéria é permanente, como na casa em redor da árvore, a luz é cíclica, mas a luz da casa temporária é permanente, a obra apenas se completa com a luz. É uma obra sem ocaso, que apenas existe num tempo de ligar e desligar, é uma casa com interruptor, literalmente feita para ser interrompida. E não convém esquecer que a luz permanente é a luz mais humana, é a energia que fazemos viajar.
A casa permanentemente iluminada é temporária, a iluminada ciclicamente é permanente... são quase iguais. E a forma é a mesma: são compridas, e as dimensões também são as mesmas, mas as matérias e os tempos de que são feitas estas semelhanças são muito diferentes. Uma é moldada e a outra
construída. A casa em redor da árvore é moldada na pedra líquida que tanto fascina os arquitectos druidas que adoram um material combinatório que subitamente cristaliza no negativo do seu molde.
O contorno de betão escolhe entre as árvores, entre a árvore que domestica e a árvore que projecta a sua sombra na casa. É uma linha fina, colocada cuidadosamente longe das raízes das árvores. Mas tão delicado contorno foi vertido num molde, numa cofragem, uma estrutura temporária que habitava
tanto interior como o exterior desta casa ainda antes da casa existir. As pequenas janelas que sobram nos muros da casa são o que resta deste grande negativo, desta outra estrutura que permite, como na fotografia, revelar a casa. As fotografias revelavam-se e fixavam-se, o betão solidifica e cura ou cristaliza, mas como processos da mesma idade moderna, são instantâneos, subitamente novos e perenes. A outra casa é construída de um material que é fabricado, que é extraído, refinado, fundido, industrializado, antes de ser montado em forma de casa com luz. A matéria desta casa, como ela, é temporária, está nesta forma e neste lugar num intervalo de tempo. A casa de levante é feita de um material fundido, capaz de se reconfigurar, de fazer a sua forma desaparecer aqui e aparecer outra e noutro lugar, numa transformação contínua quase sem desperdício. A sua forma, como a sua luz, são feitas para serem interrompidas. A sua cor não tem sombra e nela os ciclos do sol não se desenham. E implantam-se no seu lugar imediato e contingente; numa diagonal maior ao descer de uma escada ou cuidadosamente entre as raízes velhas das árvores. Assentam no chão como as casas velhas, apoiadas noutras casas ou noutras coisas, sem olhar para o sol ou para os pontos cardeais. O mundo destas casas é o mundo das coisas, não o mundo dos astros.
As casas também são quase iguais no que não têm em comum com as outras casas... não têm portas, nem janelas, nem telhados, escadas ou tubos. As paredes não chegam ao chão, suspensas em vez de apoiadas como as outras paredes, o que torna desnecessários os intervalos que limitam o chão de dentro e de fora como as portas. É difícil dizer um dentro e um fora: se as casas são o pátio que sobra, e fora delas estamos na realidade dentro da casa; ou se guardam tesouros em vez de intimidades, como os cofres, casas muito pequenas onde ninguém mora por vezes construídas dentro das casas, e por isso fora destes cofres estaríamos no interior da intimidade que os rodeia... o que também torna inúteis os intervalos entre a extimidade e a intimidade chamados janelas. E também não têm telhado, uma é coberta pelas árvores outra pelo museu... e não têm os caminhos das pessoas como as escadas nem os caminhos das coisas e dos fluxos como as canalizações... os lugares em comum estão ausentes...
e as coisas que as casas têm existem como assombrações, como ausências familiares, tão familiares que chamamos casa a uma soma de partes ausentes, de componentes inexistentes, que flutuam e desaparecem.
Escrevê-las quase iguais é escrever o lugar singular que apenas acontece quando as casas acontecerem ao mesmo tempo, quando acontecer um encontro de casas...
Porto, quase Primavera de 2016
Joaquim Moreno