Um diálogo aberto com Carlos Nogueira Construção e memória
JOSÉ JIMÉNEZ
Sabemos onde moramos...? Os seres humanos procuraram sempre, inclusivamente ao longo do processo evolutivo e na etapa de formação da espécie, lugares ou âmbitos de protecção. Não permanentes, durante dois milénios plenamente nómadas da humanidade em que os grupos étnicos se estruturavam como bandos de caçadores/recolectores. Pretensamente estáveis, pelo contrario, quando se produzem os assentamentos urbanos que têm como base a produção agrícola e a domesticação dos animais. Até hoje. Até aos complexíssimos agrupamentos urbanos do nosso tempo e à formação de uma telépolis que nos leva a derivações virtuais numa cidade digital cada vez mais global. A esse espaço protegido, desbravado, chamamos, em termos gerais, casa.
Para os seres humanos, morar implica desbravar ou construir um espaço onde habitar, onde proteger os sonhos de permanência e estabilidade. É aí, nesse núcleo central da existência humana, que se situa a tensão artística exemplar de Carlos Nogueira. Ele próprio no-lo indica: “A minha obra centra-se em
questões de tectónica e poética”. Tectónica: construção. Poética: interrogação plástica.
As obras de Carlos Nogueira, na sua diversidade de suportes e de práticas, levam-nos a uma consideração sobre o lugar que os seres humanos constroem na terra em que habitam, para assim poder morar. E, assim, a construção plástica entrelaça-se com a memória. Onde situamos esses espaços para a vida...? Que há neles de natureza e de cultura...? Donde vêm os espaços em que moramos...?
Neste ponto, é importante recordar que o espaço é uma abstracção. Num primeiro olhar, o espaço é transparente, invisível: vemos as coisas, as pessoas, os objectos, mas não o espaço. Perceber o espaço implica todo um processo de abstracção. Assim surge a geometria, a partir de uma visão abs-
tracta da natureza e das suas formas. Neste ponto, como em tantos outros da nossa tradição cultural, a concepção do espaço é um produto da mente grega.
É um conceito que aparece no processo de constituição da filosofia-ciência na Grécia, e pela primeira vez provavelmente em Pitágoras (570-497 a. C.), o que em si mesmo é relevante, dado o papel central do número e das matemáticas no pensamento pitagórico. Posteriormente ocupa a atenção de Zenão de Eleia (nascido à volta de 490/485 a. C.) nos seus conhecidos paradoxos lógicos sobre o movimento.
E recebe já uma formulação categorial precisa num dos últimos, e com o tempo mais influentes, diálogos de Platão, Timeu, cuja data provável de redacção se situa aproximadamente na segunda metade do século IV a. C.
Como se produz a génese do mundo? É nesse contexto cosmológico que Platão estabelece um uso categorial preciso do termo espaço [jóra], ao afirmar que “há ser, espaço e devir, três realidades diferenciadas, e anteriores à geração do mundo” (Timeu, 52 d). O ser corresponde, em Platão, às Formas exemplares ou Ideias, que caracteriza como “a espécie imutável, que não está sujeita ao devir nem à destruição”, e também como “invisível e, mais precisamente, não perceptível por meio dos sentidos”.
Pelo contrário, o devir é “perceptível pelos sentidos, gerado, sempre em movimento” (Timeu, 52 a).
Entre os pólos extremos, o das Ideias-Formas, que estão propriamente “para lá” do mundo, e o do devir, que acaba por coincidir com o mundo sensível, há também, diz Platão, “um terceiro género eterno, o do lugar, que não admite destruição, que providencia uma localização a tudo o que possui uma origem, que se pode captar por um raciocínio bastardo sem a ajuda da percepção sensível, a custo credível, e quando olhamos para ele, sonhamos e dizemos que necessariamente todo o ser está num lugar e ocupa um certo espaço, e que o que não está em nenhum sítio da terra ou do céu não existe” (Timeu, 52 b).
A concepção platónica do espaço não só faz dele uma espécie de “mediação” entre a firmeza essencial do ser e o devir mutável do sensível, como também, com o seu carácter eterno e indestrutível, “providencia uma localização a tudo o que possui uma origem”; ou seja, actua como receptáculo ou contentor, onde todas as coisas ou seres se situam, têm o seu lugar. Só pode captar-se, segundo Platão, “por um raciocínio bastardo”, e nisso diferencia-se das Formas às quais se chega unicamente através do “raciocínio verdadeiro”, do uso estrito da razão. Mas “sem a ajuda da percepção sensível”, o que implica também uma diferença face ao devir, captável pelos sentidos e não pela razão. Assim, em última análise, numa situação intermédia entre a razão e os sentidos e, ao mesmo tempo, fora de ambos os planos, o espaço é uma ideia tão abstracta que, como admite o próprio Platão, resulta “a custo credível”.
E, no entanto, o que os seres humanos desbravam ou delimitam para morar é uma construção no espaço. Quando vi pela primeira vez no Parque de Esculturas de Santo Tirso a admirável construção escultórica Casa comprida com árvores dentro (2012), de Carlos Nogueira, imediatamente me senti transportado a essa dificuldade para acreditar na existência do espaço de que já falava Platão. Em si própria, a obra é a expressão de um paradoxo: é ao memo tempo, simultaneamente, cultura e natureza.
Dependendo de onde nos situarmos, vemos duas árvores dentro da construção, ou uma dentro e outra fora.
A construção plástica: um prisma de betão que se eleva sobre quatro pilastras permite-nos estar ao mesmo tempo fora e dentro, na natureza e na cultura, como nómadas ou como seres urbanos. Carlos Nogueira indica nas notas do seu projecto que a construção é em betão branco, cuja cofragem se realiza em fases distintas para assim poder perceber as “fatias”, as fases, em que foi realizada. Literalmente: construção e memória.
Esta questão é central no conjunto da trajectória artística de Carlos Nogueira. Por exemplo, em Paisagem, uma obra de 1983, um plano rectangular e oscilante de tinta acrílica preta sobrepõe-se a uma superfície branca. E por cima inscrevem-se, literalmente, as frases “branco sobre branco” e “ficar quieto então como é diz lá”. Ficar quieto ante a sobreposição. No deslizamento do preto sobre o branco. Ou do meu próprio corpo sobre o espaço. Porque tudo na vida, e isso é uma revelação da arte, é sobreposição e contraste: branco sobre branco, fora/dentro, natureza/construção humana.
É decisivo manter na construção as marcas da memória, o registo das suas fases. Para que assim a obra nos leve à compreensão de que não há espaços homogéneos nem excludentes: tudo é mistura e síntese. E concluo com palavras do próprio Carlos Nogueira, como no caso anterior tomadas do seu catálogo o lugar das coisas (2013): “CONSTRUIR UM LUGAR UMA PARTE DENTRO A OUTRA DO OUTRO LADO”.
tradução CIDÁLIA ALVES DOS SANTOS