voo doméstico
DELFIM SARDO
Para descrever as obras de Carlos Nogueira temos que recorrer a muitas palavras que pertencem ao léxico da habitação: há portas, janelas, armários e caixas, paredes e fissuras, como as que as casas abrem quando são usadas e o tempo as vai consumindo. Há uma palavra para essa persistência das casas que não se esgota nem se confina na arquitectura, um halo doméstico, com tudo o que acarreta de dimensão vivida no interior. Como nas casas, em que existem lugares para as coisas, também na escultura de Carlos Nogueira existem lugares para configurações que são remanescentes de uma ordem, ou de muitas ordens que se entrecruzam em teias de pontos que são coincidências significantes.
Há poucos artistas tão tomados pela ordem das coisas: não há peças que não possuam medidas que são em si mesmas repetições de ordens antigas, sequências numéricas que desenrolam a partir de matrizes que são sempre múltiplos de 3, em coincidências que, ora são exaustivamente
trabalhadas, ora acontecem, como se uma direcção exterior, uma força as movesse. Não é clara qual é a natureza dessa força, embora seja evidentemente intencional, ou o artista a carrega com uma intencionalidade que não pertence à dimensão do racional, mas de uma sensibilidade para
acontecimentos coincidentes. Que ganham, por força dessa intencionalidade, uma métrica que tudo parece perpassar. Todas as dimensões de todos os componentes que integram as obras — chamemos‐lhes desenhos e esculturas —, parecem configurar uma necessidade de uma pertença anterior. A quê? Certamente à arte enquanto forma, porque o jogo formal decorre dessa ordem prévia, como uma ciência subjectiva, pessoal, circular, que o artista deixa desenvolver, ou faz aparecer. O halo doméstico nasce, assim, dessa convivência com coisas, fragmentos que se agregam em máquinas de coincidências necessárias e que ocupam lugares que lhes são confiados.
Esses lugares são paredes, parcelas de chão, enfim, habitações temporárias para métricas e relações suspeitas de transcendência.
Harald Szeeman chamava a esses projectos artísticos que se ancoram numa visão de mundo quase intransmissível, cheia de intrarremissões, «mitologias individuais». É dentro desses universos que a obra de Carlos Nogueira se pode mover porque ela não pretende possuir nenhuma exemplaridade redutível a uma regra, um cânone ou um procedimento senão aqueles que se ajustam à sua necessidade de domesticidade, de estabelecimento de pequenos atlas de orientação: a disposição de objectos recolhidos e preciosamente coleccionados, a conversão de peças que pertenceram ao mobiliário em esculturas que não perdem a doçura de um corpo que as usou ou a transformação de portas e janelas em portais cegos, activáveis como máquinas projectivas. Toda esta panóplia de dispositivos ganha sentido em relações com a habitação de um espaço. Repare‐se que as obras de arte estão sempre em exílio. No ateliê são coisas que atulham o espaço, nas galerias e nos museus são recém‐chegadas que lutam para converterem os contentores que as recebem em lugares e produzirem sentidos e poéticas. No caso de Carlos Nogueira, essas poéticas são sussurradas em escalas de relação com o próprio corpo do artista, com a concatenação de relações que, invisíveis, estruturam sentidos. Por isso há uma racionalidade outra, da ordem da sensibilidade, que parece colocar cada coisa num lugar indiscutível, muitas vezes invisível, como se o artista procurasse que, com os olhos fechados, essas relações corporalizadas fossem visíveis. A complexidade é oriunda das obras começarem com um encontro (com qualquer coisa, com um despojo, por vezes despiciendo, outras vezes carregado de memórias e usos), no qual se rebate uma métrica — pessoal e intransmissível, transcendente —, que se afirma na imanência do lugar encontrado, miticamente pedido pela própria obra, como se um animismo escultórico fosse inevitável. E se é inevitável, possui uma causalidade e, portanto, uma racionalidade. Em que ficamos?
Não podemos, no entanto, tomar o trabalho de Carlos Nogueira como alheado dos desenvolvimentos da arte contemporânea, com uma produção excêntrica em relação às movimentações dos artistas que, desde o minimalismo agitaram a noção de objecto artístico, a sua relação com o objecto comum ou o próprio estatuto do objecto artístico. Desde a década de 1970 que Carlos Nogueira veio a incorporar no seu trabalho uma poética do gesto que se ligava intensamente ao universo da performance, em relação à qual foi desenvolvendo um contínuo entre acção ressignificante e objecto pelo uso convertido em artístico. Parece claro que essa dimensão do seu trabalho, fortemente lírica, partia já de uma temporalidade produzida como uma lentidão voluntária na relação com os objectos
e com o mundo e que essa desaceleração, claramente contemplativa, continha uma determinação conceptual. Como se a temporalidade aberta no gesto lento e repetitivo afastasse paradoxalmente a voragem da vida aproximando‐se de um vitalismo da contemplação, da maravilha do mundo.
Por outro lado, a escala do trabalho foi‐se amplificando até uma dimensão de diálogo com a arquitectura, quer a partir das suas componentes arquetípicas (o abrigo, a cobertura, a parede, o muro), quer a partir da escala urbana que foi exigindo uma depuração projectual, necessariamente tributária de uma intimidade com a prática arquitectónica. O que é interessante é que, nem a escala objectual se deixou reificar na instância do objecto próprio da escultura de pequena dimensão, nem a escala urbana converteu o seu trabalho à escala monumental porque uma dimensão discursiva, uma possibilidade de descrever o trabalho como acontecimento ordenador, sempre se sobrepuseram à importância da massividade. A intimidade entre o trabalho de Carlos Nogueira e os processos (também comuns) a alguns artistas minimais, não implicam nenhuma filiação no entanto, mas um diálogo crítico de procedimentos sempre dominado por uma procura poética que a tudo se sobrepõe. Por vezes, a ligação à arquitectura, a partir das estruturas arquetípicas que a matriz disciplinar desta convoca, é mais intensa do que à tradição puramente plástica, embora o carácter projectual próprio da arquitectura seja aqui substituído pela manipulação de elementos e materiais, mesmo quando a escala do trabalho implica uma instância prévia de projecto. É, apesar disso, o carácter háptico dos materiais que prevalece, colocando a sua escultura numa outra linhagem de pensamento que não a da opticalidade da arquitectura, mas do espaço táctil e segregado pelo toque.
No entanto, uma outra permanência se afirma regularmente no trabalho de Carlos Nogueira, provavelmente remanescente da mesma importância táctil que o seu trabalho escultórico ostenta, que é o desenho. Enquanto inscrição directa nas obras, o desenho atravessa a sua produção mais recente, não porque esteja ligado a uma qualquer ambição de encontrar um eixo mais directo de contacto entre o espírito e a mão, mas porque o seu trabalho tridimensional requer inscrição de linhas e superfícies que mudam a hapticidade das obras, ora tornando superfícies mais ásperas, ou mais oleosas, ou mais densas; ou então porque necessita de refazer a perspectiva, contrariando a tirania euclidiana; ou pura e simplesmente porque o gesto do desenho possui um eco do processo
de escrita, também ele desenho.
De uma forma geral, poderíamos dizer que o desenho, em Carlos Nogueira, é parte integrante da reconfiguração da superfície e constitui um correlato em relação às outras tipologias que usa: o reflexo, seja em vidro ou espelho, e o uso de cera ou parafina, como noutros casos o estuque ou a tinta de esmalte espessa e quase alimentar. Em qualquer destas situações volta a reequacionar‐se o problema da ordem e a questão da serialidade: as séries são produtivas porque entre os seus elementos interferem desenhos que introduzem ínfimas diferenças que ressignificam o conjunto e lhe conferem valores diversos dos seus elementos isolados. Por outro lado, a serialidade que vai exalando e exaurindo variações sobre elementos (o que é particularmente visível nestes dois momentos expositivos das galerias 3+1 e Appleton Square), à medida que parece instaurar o mesmo — a semelhança de um ritmo, a regularidade de uma sucessão —, induz elementos de perturbação que interrogam sempre sobre a ordem íntima, essa mesma ordem a que já chamámos subjectiva e sensível.
Em última instância (e esta expressão é tão traiçoeira que deveria ser evitada), essa ordem invisível só mora nos intervalos dos elementos visíveis e tácteis que se repetem no espaço, que se agregam e desagregam em convivências frágeis, a partir das suas fátuas diferenças. É portanto uma ordem visível que só se manifesta nos intervalos da visibilidade. Para isso, necessita de tempo, de uma lentidão construtiva própria, de uma encenação e de uma teatralidade do gesto e da palavra que nomeia. A morte espreita, não de forma necessariamente trágica, nessa temporalidade, porque lhe fornece a métrica e a necessidade. E essa é outra das interessantes contradições do trabalho de Carlos Nogueira: a desaceleração que pede é mais densa porque sabe a inevitável fugacidade, ou seja, reivindica o tempo na consciência da sua escassez.
E o tempo dessa fruição é o tempo escasso da casa, da janela e da porta que abre e fecha, do degrau que range, do banco que encaixa sob a mesa, do papel numa resma que poderia — talvez ainda possa — vir a ser uma escultura se, num voo doméstico, o olhar que sobre ele se deposita lhe compreender e conferir uma ordem.
Dezembro de 2015