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a sapiente mutação

JOÃO BARRENTO



... a casa a casa é uma sapiente mutação.
(João Miguel Fernandes Jorge, Alguns Círculos [1973])

1. Casa: o seu desenho
Um pensamento vai‐se construindo e estruturando, na sua configuração nunca definitiva, à medida e ao ritmo mutante da fala. Esta intuição é desenvolvida num pequeno ensaio de Heinrich von Kleist, intitulado «Sobre a progressiva elaboração dos pensamentos enquanto se fala». A intenção não é a de chegar a um sentido final para o pensamento, o princípio condutor é antes relacional e aberto.
Kleist avança a certa altura a ideia de que com o fim de cada período do discurso se abre como que uma clareira de percepção — e o período deste autor é conhecido pela sua construção sintáctica complexa, em dobras, mas rigorosa e límpida, a que geralmente se aplica o conceito alemão de Verschachtelung — ou seja, a imagem de caixas dentro de caixas. Na construção da frase (e muitas das sequências construtivas de Carlos Nogueira são frases, segmentos de discurso, produzidos com um vocabulário visual muito próprio) Kleist refere processos que facilmente se poderiam transpor para o método que o artista de há muito parece seguir, já nas primeiras intervenções de carácter mais performativo, nos anos setenta e oitenta. O autor alemão explica: «Introduzo na frase sons não articulados, amplifico os elementos de ligação, uso também aposições em lugares onde não seriam necessárias, e sirvo‐me de outros recursos que me permitem alargar o discurso, de modo a ganhar o tempo necessário ao fabrico da minha ideia na oficina da razão.»
Por sua vez, uma obra — e a Obra de Carlos Nogueira em particular —, que nunca é linguagem universal e neutra, mas sempre fala particular e própria, que «não nasce, mas se faz», vai‐se configurando como construção progressiva, no devir de obra a obra e no espaço e tempo próprios de cada instalação ou exposição. O fundamento que a sustenta, no caso que aqui importa pensar, é o do «modo leve de mudar» de uma matriz ou de um arquétipo fundador, que em Carlos Nogueira parece ser desde há muito o da casa — nos inúmeros sentidos que podemos atribuir à palavra e à coisa: estrutura arquitectónica, lugar habitável (nem que seja pelo olhar, por um «chão branco», pela luz ou por uma árvore), módulo, elemento de um jogo ou de um puzzle, enquadramento, perímetro, mesmo categoria ontológica... Casa é, diz um poeta nosso, tudo aquilo «que se torna em nós centro e distância», «a gravura do tempo, no limite / das linhas já delidas», «a simetria // que se encontra de novo no que vimos / disperso...» (Fernando Guimarães, em Casa: O Seu Desenho) — linhas que sem dificuldade se poderiam aplicar a muitas obras de Carlos Nogueira, como ainda melhor se verá.
Cada obra de Carlos Nogueira volta a preencher e a oferecer ao olhar a casa que um mundo mergulhado no paroxismo da imagem já não sabe ver. A obra restitui sentidos à casa vazia do mundo, que Hölderlin, e no seu rasto Fiama, viu como um deserto do olhar, que os materiais dispersos e remotos, a acção do tempo e a disponibilidade para ser penetrada de novos sentidos vêm reconfigurar. Assim em Fiama — no poema «Aber das Haus ist öde mir» [Mas a casa está para mim deserta], de (Este) Rosto, um livro de 1970 —, novamente com possíveis pontes para Carlos Nogueira:

     Mas a casa (sítio do corpo), é o vazio,
     as figuras: ora o traçado da pedra, o interior, ora (lugar ambíguo)
     disseminados seixos. Assim a casa, a esfera.
     Em seu parâmetro há o tempo. É imutável. Próximas ou apenas longínquas
     as linhas movem‐se — uma árvore distante, e logo
     a sua fenda de seiva tangível; uma neblina ascende,
     o espaço é penetrável.

Cada obra de Carlos Nogueira parece vir dizer‐nos que é preciso construir sempre a casa que o mundo não oferece. Mas os materiais estão aí, disponíveis e abandonados, nesse mundo para onde já não se sabe olhar. É quase sempre a esse «armazém de sinais» esquecidos (casa do Ser, lugar do Há) que o artista vai buscar a matéria — elemental ou industrial, orgânica ou já construída — de que se fará a obra. Que pode chamar‐se casa ou desenho, paisagem ou rio, que será sempre «instalação», mas livre dos sentidos mais técnicos do termo, aproximando‐se antes da leitura que desse termo (e de uma obra: no caso, chão de cal, de 1994) fez Maria Filomena Molder ao escrever: 
«a instalação repõe de maneira radical a impureza própria da arte, o seu poder encantatório» (e isto pode também querer dizer: o enigma do seu eterno inacabamento), e é «uma forma de salvar o ritual», colocando no seu lugar «os diferentes objectos necessários», superando a efemeridade própria de cada um deles (tantas vezes objectos achados — ou procurados), levando a matéria da arte a devir presença na obra. Na casa sensível que é a obra (inacabada) cada objecto, cada resto, cada ruína vem à presença, altera necessariamente o seu estatuto, passa a estar aí, na relação com todos os outros, por outra coisa. Neste sentido existe um sentido «transcendental» em cada obra de Carlos Nogueira, se entendermos o termo como o usaram os primeiros Românticos alemães. Ou como ele está presente nessa arte tão distante e tão próxima daquilo que aqui nos ocupa, que é a do Sakutei‐ki, a arte dos jardins japoneses, onde nada é, tudo se evoca, e tudo o que está aí habita uma distância. Ocorre‐me, agora que tenho diante de mim as obras de Carlos Nogueira, o que um dia escrevi sobre essa arte:

     dispõem‐se as pedras
     nos lugares que as esperam
     e casam‐se com o pântano.
     o resto —
     a água verde as ilhas
     os troncos secos suspensos
     como se fossem coisas vivas
     a toalha de folhas subindo
     pela encosta de brincar
     os bonsai e a areia
     estriada das margens —
     é o plano do todo.
     um mundo imaginário
     feito de pedras reais.
     a arte da imitação
     levada ao paroxismo.
     o instante petrificado.
     tudo como quem está
     em casa no universo.

O traçado desta casa faz‐se, diz Carlos Nogueira da sua Obra, «da luz e da geometria do tempo».
Como Walter Benjamin, construindo a história «a contrapelo», sabendo que por alguma razão «fomos esperados sobre esta Terra» para olhar para trás e recuperar o que está disponível no passado («o património existente», dirá Carlos Nogueira), mas foi esquecido, e poderá ser decisivo. É importante perceber esta noção de disponibilidade sem limites, para entender como a construção da obra, da casa, se faz para que nasça um espaço «entre a torre e o poço» — isto é, a luz e a profundidade, o visível e o invisível, «uma casa geométrica com abertura para cima», onde «quanto mais alta a torre, mais fundo e escuro o poço», ainda nas palavras do artista.

2. «Não colecciono nada. Junto tudo»
A afirmação é de Carlos Nogueira, em 1981. Algumas das suas obras mais recentes — casa deitada, na Fundação EDP, em 2012, e sobretudo da natureza das coisas tudo acaba, na Culturgest Porto, em 2014 — levam‐me a interrogar de novo a ideia subjacente àquele «juntar». Quem junta traz à proximidade o que estava distante. Aproxima restos existentes antes da obra, e fá‐los entrar em relação na obra. O coleccionador acumula o que considera serem objectos singulares (e potencialmente valiosos) do passado; aquele que junta restos e ruínas leva‐os a agir de novo em relação e em con‐texto vivo, em com‐posições suas. A ideia de com‐posição, que no Heidegger de A Origem da Obra de Arte, e no contexto da busca de uma forma de «verdade» como desocultação (aletheia), recebe o nome de Ge‐Stell, pode ser muito produtiva para o processo criativo de Carlos Nogueira. Esta noção heideggeriana (tomada no sentido que assume antes da sua aplicação ao problema da técnica, que não interessa aqui) remete para aquilo que é próprio da obra enquanto algo que nasce de um desafio (Herausstellen) e leva a uma construção, a um «trazer à luz» (Hervorbringen): a obra, vista como construção de relações, encontros e novos sentidos, é um fazer (um gesto poiético) que visa desocultar o que estava oculto. Mas também mais tarde, em Identidade e Diferença (de 1957), Heidegger define ainda este conceito em termos que nos interessam aqui, de relação e mútuo reconhecimento: «O Ge‐Stell é o nome que damos a esse modo de presença em comum próprio de um modo de habitar o mundo que coloca o homem e o ser em relação um com o outro».
Ora, numa obra de Carlos Nogueira o que estava oculto, em cada peça que a configura, é precisamente uma origem (solitária), e uma disponibilidade para a relação como condição de criação de (novos) sentidos. É este o desafio presente em muitas das suas obras, é esta a matriz de actuação que o move. Também podíamos dizer: o gesto ou o movimento (muitas vezes performativo, ou para‐formativo) que leva a um estádio de obra — que não é necessariamente obra acabada, dado o carácter efémero (tantas vezes referido), e sobretudo a condição disponível para novas configurações, de muitos exercícios da po(i)é- tica tectónica de Carlos Nogueira. Isto aplica‐se tanto a uma macro‐construção (a casa deitada cuja estrutura de base é também a da casa quadrada com árvore dentro) como a toda uma série de micro‐«desenhos» ou «estudos de projecto», tão próprios deste artista, e que se repetem e desdobram sem levarem necessariamente, ou linearmente, do projecto à obra para aí permanecerem eternamente. Dir‐se‐ia que não há qualquer pretensão de eternidade nesta Obra em eterno devir. Basta‐lhe criar geometrias — de espaço e tempo — ou constelações, assemblages ritmadas por leves tensões e acenos entre elementos díspares (ou entre quem faz e quem recebe): peças que vêm de um passado, mas não se ficam pela casa inerte e contemplativa da colecção, antes se dando à utilização e reutilização, a uma nova vida lúdica, na obra tantas vezes feita e a refazer. Objets trouvés (com ou sem memória pessoal), restos e ruínas de outras obras, tudo se mostra disponível para novos encontros. É na relação que a obra se dá a ver — mesmo a que é constituída por uma só peça, como vimos —, é aí que ela se mostra na sua dupla condição de autonomia (formal) e fragmento arrancado ao fluxo do tempo (isto é visível já nas primeiras acções de rua e nos postais das paisagens de (man)dar).
Ainda à luz de uma noção como a de Ge‐Stell, tal como a entendo aqui, cada peça, cada resto, ao mudar de lugar e de tempo muda de posição e de sentido — assa a ser posição‐com, entra numa nova condição, a de obra, sofre um des‐locamento no espaço, no tempo, na perspectiva, na significação. A casa deitada que veio de outro lugar e mudou de posição passa a existir nesta sua nova condição de obra, «ao contrário da paisagem e das casas / que até então conhecera» (Carlos Nogueira). O processo parece ser então sempre o de uma recuperação, o de um trazer para fazer novo: trazer de um passado a um presente, de um lugar a outro, de uma morte provável a uma vida possível, de um existir em e por si a um existir‐com. Ao serem postos‐em‐obra, sendo assim arrancados à ocultação a que estavam condenados, e trazidos à presença, os materiais, as peças, os fragmentos despiram‐se de uma origem para ganharem um lugar (que é o espaço em que eles, imbuídos de tempo e oferecendo‐se ao olhar, se assumem como novas promessas de sentido).
E nessa passagem do inerte (inútil?) ao vibrátil fizeram o caminho que vai de um ergon (produto estático) a uma energeia (actividade dinâmica), como das formas de linguagem disse um dia Wilhelm von Humboldt, para quem as línguas não eram meros sistemas gramaticais, mas suportes de uma visão do mundo.
E assim «as coisas» regressam com uma nova natureza (que afinal não acaba), e a cofragem da casa branca e sólida, de pé e com uma grande árvore a habitá‐la, no parque de Vila Nova da Barquinha, sofre mais uma «sapiente mutação» ao ressuscitar na forma da estrutura aberta da casa deitada, que dá a ver o que estava oculto e se limita a mudar de posição — noutro lugar e noutro tempo.

3. O projecto: ritmo e cesura
Cada «peça», cada resto, cada fragmento de real, vindos de fora, entram (ou reentram) na obra, como se disse, com um outro estatuto relacional, e isso transforma inelutavelmente a sua essência constitutiva («uma existência própria centrada sobre si própria», como o filósofo Georg Simmel escrevia há um século). Mas, face a uma obra como a de Carlos Nogueira, perguntamo‐nos: terão eles uma essência, sendo o seu traço constitutivo, no interior da obra, o dessa tensão relacional e da mobilidade funcional? Se a resposta for negativa, teremos de aceitar que aqui a essência se deslocou da objectividade da obra e de um seu pretenso centro para a dinâmica móvel do próprio processo e de uma noção de obra como «projecto». À primeira vista dir‐se‐ia: é simplesmente uma conhecida marca pós‐moderna. Mas já antes outros, como Paul Valéry, perguntavam: «Por que não haveríamos nós de ver o processo de construção de uma obra de arte também como obra de arte?» 
No caso de Carlos Nogueira — ou no de uma obra de linguagem como a de Maria Gabriela Llansol — a conclusão a extrair é a de que a Obra é essencialmente processo e projecto, e está em permanente devir, num ritmo que se continua ad infinitum, segundo o princípio de repetição na diferença. E cada obra singular é a confirmação visível disso no plano do finito, com os seus ecos, as suas remissões, reaproveitamentos e repetições do diverso. Como diria Llansol, o princípio desta Obra é o do eterno retorno, não do mesmo, mas do mútuo, daquilo que se cor‐responde e «se revela no modo leve de mudar». Neste processo, a «mesmidade», o sempre igual do ritmo infinito, que seriam fatais, são evitados pela introdução de uma série de efeitos de «imperfeição», ou por aquilo que Benjamin, falando de Hölderlin, designa de «efeito de cesura», e Blanchot (em L’écriture du désastre) vê como uma pulsação inquieta de algo de vivo, música imperfeita que tem o dom de quebrar a cadência regular de uma semântica do contínuo e de lançar o sentido para a distância, confirmando a anterioridade do ritmo em relação ao sentido. Em Carlos Nogueira é inquestionável a importância do ritmo como princípio estruturante da obra, mas igualmente a necessidade de fazer vibrar a sequencialidade rítmica por meio da «lei calculável» de «interrupções contrarrítmicas» (as expressões são de Hölderlin). Lei calculável, mas não mecânica nem racional, que Benjamin, falando de Hölderlin, comenta nas seguintes palavras: «a melhor forma de explicar aquele ritmo seria dizer que alguma coisa para lá do poeta intervém na poesia». No conjunto dos seus «seis desenhos e cortantes» para a exposição nem sombra nem vento, em 2002, Carlos Nogueira põe à vista de forma clara este processo de construção ritmada com cesuras. João Miguel Fernandes Jorge interpreta esses seis desenhos brancos à luz do que designa o seu «pendor místico» para o abismo do «sem‐fundo», e do conceito suprematista da «excitação» (proposto por Malevitch). Mas talvez não haja aí, se os olharmos à luz daquela «lei calculável» de Hölderlin, e do que conhecemos do próprio processo de trabalho de Carlos Nogueira, mais do que uma forma particular do sublime sem pathos, de pequenas epifanias do material em que o «modo leve de mudar» do artista introduz aquele mais‐de‐linguagem da obra, com a sua marca unheimlich, estranhamente perturbadora, de que fala Heidegger a propósito de um dos grandes hinos de Hölderlin sobre «O Danúbio».
Na «leveza e claridade» próprias do «peso das coisas» que integram a presente exposição de Carlos Nogueira é também muito visível esta leve tensão entre o rio infinito do ritmo e a música dissonante e necessária das ínfimas cesuras que o pontuam, na alternância do negro e do branco, nos pequenos desvios de sequências e escalas, nas ténues variações entre as tonalidades da parafina, da grafite ou do vidro, sabiamente doseadas entre a transparência, a reflexividade e a superfície opaca, a disposição vertical, horizontal ou oblíqua dos elementos.

3. Das paisagens: jogos e tensões de tempos e espaços
Geram‐se assim, no espaço da própria tessitura da obra e dos tempos nela presentes, aquilo a que poderíamos chamar «paisagens», e que o artista por mais de uma vez assim tem designado. Como acontece também com esta noção na Obra de uma criadora de paisagens e figuras como Maria Gabriela Llansol, paisagem não é, para Carlos Nogueira, um espaço preenchido, natural ou construído, que se desenrola entre mim e o horizonte. Paisagem é algo que acontece no interior da obra, pela interacção entre texturas, formas, cores — e os apelos imaginários daí nascidos. Por isso Carlos Nogueira, com a sua intuição muito particular para os títulos (a que João Pinharanda já chamou o seu «secreto vício de nomear»), traz muitas vezes para as suas obras termos como «paisagens», «rio», «floresta», «nascentes», «as terras todas», «o mar a pedra», «linha de mar»...
Llansol verá ainda a paisagem textual como «um reino natural de silêncio», e escreve: «Quando me aproximo de uma paisagem, aproximo‐me desse silêncio; aqui, não há nenhuma paisagem abandonada porque uma paisagem não reage como as casas sós. Não está triste, mas serena de narrativa. Se eu conseguir colocar o texto em consonância, o melhor‐do‐humano é‐me devolvido pela paisagem.» Também não há abandono nas paisagens de Carlos Nogueira, porque  elas estão preenchidas pela densidade dos seus materiais e texturas, humanizados na aparente frieza da construção ou da instalação, pelo tempo vivido que deles ressuma. É ainda e sempre «um recorte da natureza» (na definição de Simmel), mas agora na forma de uma segunda natureza humanizada pelos
estratos de tempo que sobre ela se depositam — nas diferentes fases do trabalho do artista e sobretudo nos objectos e materiais que a integram, muitas vezes sem esconderem o seu estatuto de refugo, resto, ruína. Mas, diferentemente da ruína que na paisagem gera uma relação com o tempo que é da ordem da nostalgia, aqui esta é anulada pela reabilitação (que é mobilização e nobilização) dos restos que o repositório do passado ou o acaso dos encontros têm para oferecer. A relação com o tempo altera‐se, porque o passado deixa de ser um cemitério de nostalgias para passar a ser um depósito de promessas. E não podendo a obra anular ou rejeitar a sua condição de coisa construída (sempre vista como violentação ou reverso da natureza), ela reaproxima‐se assim da sua condição de eco — resposta, mas não representação — do mundo e do que os dias nele foram deixando. Pela via deste equilíbrio tensional, Carlos Nogueira aproxima‐se de uma certa classicidade, de que um autor como Goethe (um clássico atípico) ou os primeiros Românticos alemães (já arautos da nossa
modernidade) estavam bem cientes, como se pode ver em algumas linhas de um poema do primeiro sobre «Natureza e arte»:

    Natura e arte parecem não se dar,
    E sem darmos por isso se encontraram.
    [...]
    À perfeição chegar é veleidade.
    Toda a grandeza exige contenção;
    Sabe aceitar limites a mestria,
    E só a lei nos dá a liberdade.

Se do plano do tempo passarmos para o da dimensão espacial das «paisagens» de Carlos Nogueira, tudo se torna ainda mais evidente nas suas construções, porque elas se constituem estruturalmente na base de um princípio de ligação‐separação ou de proximidade‐distância. Qualquer construção (ou «desenho edificado», como diz Delfim Sardo) de Carlos Nogueira liga objectivamente o que estava separado — constrói, no interior da obra, um caminho que, com o tempo, se tornará método (o que é a mesma coisa, se lembrarmos o sentido grego de methodos). Há na constituição de qualquer obra um sentido de movimento sempre associado a caminho (mesmo àquele que é labiríntico, como atesta a raiz comum de caminho, movimento e labirinto na língua alemã: Weg, Bewegung, Irrweg); e também a todo o método, já que só com ele as coisas, peças, fragmentos se activam e relacionam.
A propósito deste princípio fundador (ligar‐separar, próximo‐distante) poderíamos evocar uma vez mais pensadores como Georg Simmel e Benjamin. Simmel vê no separar e ligar, materializados na imagem da porta, dois lados do mesmo acto e do mesmo movimento. Por isso (no ensaio «Ponte e porta») a porta lhe oferece mais possibilidades de sentido (e de passagem: de fora para dentro e vice‐versa) do que a ponte ou a janela. Também Álvaro Siza, a propósito da exposição desenhos de construção com casa. e céu (2006), anota: «A casa é o abrigo [...] A coisa principal da casa é a porta — para o mundo, ou para fugir ao mundo.» E ainda Simmel: «A parede é muda. A porta fala [...] O sentido teleológico diante da janela orienta‐se quase exclusivamente de dentro para fora [...], é
unilateral».
Nas obras de Carlos Nogueira abrem‐se e fecham‐se muitas portas e portadas, as propriamente ditas e as que se oferecem à imaginação, abrindo caminhos de via dupla entre obra e espectador; ou de convivência do diverso na obra, por relações de maior ou menor proximidade ou distância entre os seus elementos constitutivos — e aqui cruzam‐se, de facto, os planos espacial e temporal. Nas relações de vizinhança que necessariamente se impõem aos elementos objectivamente díspares de uma obra de síntese como a «instalação» da natureza das coisas tudo acaba (Porto, 2014), proximidade e distância entram numa relação bi‐unívoca que só é tratável em função da dupla perspectiva dos tempos dos vários objectos integrantes da obra (que o espectador desconhecerá, podendo quando muito intuí‐los vagamente) e das posições relativas que eles ocupam no espaço da estrutura onde estão dispostos e expostos. Recorrendo a um conceito benjaminiano — o de «aura» — que tem igualmente a ver com noções de proximidade e distância em relação a um objecto, artístico ou não, poderia concluir‐se que da convergência desses dois factores poderá ainda nascer a carga «aurática» maior ou menor de cada objecto ou conjunto de objectos. A aura é, para Benjamin, essencialmente uma questão de olhares e de correspondências — que tanto podem acontecer entre objecto e espectador, como entre os objectos que se «olham», a partir de espaços e tempos diversos, numa instalação de Carlos Nogueira. Benjamin: «[...] no olhar vive a expectativa de ser correspondido por aquele a quem ele se oferece. Quando essa expectativa é correspondida (e, no pensamento, ela tanto pode aplicar‐se a um olhar intencional da atenção como ao olhar puro e simples), o olhar vive plenamente a experiência da aura [...] Aquele que é olhado, ou se julga olhado, levanta os olhos. Ter a experiência da aura de um fenómeno significa dotá‐lo da capacidade de retribuir o olhar.»
Este será o lado poético, intersubjectivo e «transcendental», da Obra de Carlos Nogueira.

4. Projecto | poético | transcendental
Neste sentido (que é o dos Românticos de Iena, em finais do século XVIII), toda a Obra de Carlos Nogueira é um projecto poético transcendental. Para o mostrar bastará citar três fragmentos de Friedrich Schlegel, na revista Athenäum (1798‐1800), e entender a noção de «poesia» no sentido amplo e integrador de todas as artes (e também da filosofia e da crítica) que lhe deu esta primeira geração romântica:

1. Um projecto é o germe subjectivo de um objecto em devir. A vocação para os projectos — que podemos designar de fragmentos de futuro — só se distingue da vocação para os fragmentos do passado pela orientação. [Fragmento 22]

2. A poesia romântica é uma poesia universal progressiva... capaz de, nas asas da reflexão poética, potenciar incessantemente as coisas, multiplicando‐as como numa série infinita de espelhos. [Fragmento 116]

3. Há uma poesia exclusivamente centrada sobre a relação entre o real e o ideal: deveria chamar‐se poesia transcendental — representar‐se também a si própria e ser sempre, a um tempo, poesia e poesia da poesia. [Fragmento 238]

O carácter de projecto e o lado poético das intervenções de Carlos Nogueira têm sido geralmente assinalados. Menos claro poderá ser o sentido do «transcendental» que agora lhe atribuo. Como sugerem os dois últimos fragmentos, «transcendental» remete aqui, por um lado, para aquilo que permite elevar o comum a uma outra potência, e, por outro, para um processo de auto‐reflexão.
A Obra de Carlos Nogueira será então transcendental porque nela tudo é o que é (na imanência dos materiais, objectos, fragmentos) para logo deixar de o ser — quer pelo efeito de relação (com o resto dos restos, atenuando a sua aparente autonomia), quer por efeito de potenciação (elevação necessária a outros sentidos). E assim — para voltarmos ao arquétipo fundador com que abrimos estas reflexões — uma casa é uma casa não é uma casa, porque é tão‐somente e ainda e sempre uma construção em curso, ou porque já é receptáculo, lugar de acolhimento ou de passagem para uma árvore ou para um chão branco ou para o reflexo do céu ou... ou... Esta Obra, cada obra desta Obra é, assim, acabada e ilimitada, fechada sobre si mesma como um ouriço (a imagem do fragmento para Schlegel), mas projectando inúmeras hastes para os mais diversos firmamentos de sentido, que ao longo do tempo se foram configurando como um universo próprio. É nesta dispersão controlada que melhor se pode entender «o lugar das coisas» no universo poético, fragmentário e transcendental de qualquer «construção», de toda essa construção aberta que é a Obra de Carlos Nogueira.

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