Entre duas águas
por BERNARDO PINTO DE ALMEIDA
Poderia dizer-se: é uma paisagem. Poderia dizer-se: eu estive aqui. Estive aqui antes, antes mesmo de ter visto o que vejo agora, estive aqui desde sempre, e à espera, silenciosamente. Porque estes dados, pequenos elementos, convocam no seu silêncio de pedra e de metal, uma memória.
Esta memória começa por ser da arte – lembrança da arte povera – mas depois é memória e rearticulação dos dados da natureza, enquanto imagem dela que em nós existe.
Ali uma linha sustentada que evoca a do horizonte; ou então uma caixa contendo pedras, que nos conduz a reflectir sobre o tempo. O presente e o passado, elidindo o tempo futuro.
Além, uma caixa longa que acompanha a parede e que dela se afasta, num esboço de desenho. Noutro lugar os montes (ou as cápsulas), como regressos, e entre tudo isto um caminho que flutua, que se abre e se interrompe.
Tudo reside, provavelmente, no que entre estes dados se articula, como território que antes lá não estava, porque antes só lá estavam as paredes, o chão, os tectos, o espaço vazio; e agora estas coisas que o povoam geram, entre si e esse espaço anterior, uma outra coisa, uma coisa que não se vê mas que se sente, que todavia está presente, que pode existir em nós com o mesmo grau de veracidade (ou de verosimilhança) que tem uma imagem num espelho.
Tudo existe entre essas duas águas, a da memória e a do espaço, como reflexo, como aparência, como sugestão.
E tudo igualmente tem a estranha ambição de interromper o tempo, de o suspender na sua vocação corrente, como que sustentando a fugacidade do instante e se consagrando a torná-lo em algo que permanece (ou que resiste) como se murmurasse: o tempo acaba aqui, neste momento.
Sentimento extravagante o do artista quando tenta captar o instante, fixando-o numa imagem – e de aí que tudo isto se afaste dos projectos da arte povera e da conceptual art para se afirmar antes no território mais instável de uma dimensão lírica – como se nessa (ou através dessa) imagem pudesse dizer: «eu vi correr toda a beleza do mundo e eis o que resta do que vi (ou senti): fragmentos, provavelmente cinzas. Mas eis que nessas cinzas cintila ainda uma centelha dessa beleza».
De Carlos Nogueira se poderá dizer que é um homem oprimido pelas figuras da beleza. Que todo o seu trabalho consiste em restituir às matérias de que se apropria a sua mais elevada nobreza: uma pedra será uma pedra, um pedaço de metal, metal, o próprio ouro.
Como um pesquisador de ouro ele trabalha procurando esse instante em que a matéria se cinde e do amorfo pedaço mineral se vê surgir aquilo que nele se escondia.
Depois, que a sua vocação é também a de um cenógrafo: as suas obras encenam a inquietação no seio do repouso, imploram uma compreensão e um entendimento que não é deste mundo, que são lunares e obscuras.
As suas cores de eleição serão o negro e o branco para que entre as duas se reforce o contraste, a dimensão de tudo aquilo que existe entre dois lugares, o dia e a noite, ou entre dois tempos, porque o que ele nos quer dizer é que tudo acontece sempre entre, num espaço intersticial (inframince) que não é táctil, onde a palavra cessa e o olhar se perde no sonho e na contemplação (ou na memória) não já das coisas mas da própria ausência destas.
Aí começa o seu labor e aí se finda. Arrêt d’ image.
Julho 1992
In Carlos Nogueira, permanência da água, Lisboa, 1994, p. 19-21.