Chão de cal/instalação
por MARIA FILOMENA MOLDER
Todo o objecto de arte está investido de um poder mágico, que o torna parte, explícita ou implicitamente, de uma cerimónia secreta. Na nossa cultura, esse poder é muitas vezes engendrado por um farejar sem instinto, sem autêntico reconhecimento dos sinais nas suas condições originárias: não serem inteiramente compreendidos, para a encantação formar o seu reino, e serem sinais partilhados, que alguém ensinou a alguém, para haver sentido. Decadência da investidura mágica, que se desenvolveu no interior do propósito de chegar ao puro objecto de arte, o que implica que aquele que se coloca diante dele prescinde do pathos, da emoção, renunciando a ser interpelado por um segredo manifesto, mas não menos indecifrável.
Dito de outro modo, a nossa cultura tendeu a reduzir a impureza inerente ao objecto de arte, tornando-o um simples atractor da contemplação e do conceito, cujos elementos seriam soldados exclusivamente por uma intenção de produzir privada, solitária, constitutiva, narcisista, mesmo, e sobretudo, se eles estivessem enredados na mistificação comunicacional.
Ora, essa redução é, no limite, impossível, e o modernismo conta justamente a história de um fracasso, porque essa redução deu origem a novas formas de impureza, algumas nauseantes.
A instalação repõe de maneira radical a impureza própria da arte, o seu poder encantatório, hipnótico, a força figurativa, mágica da arte. Trata-se de uma cerimónia, de uma celebração em que nos aproximamos de uma metáfora, caminhando por dentro dela, em que nos incorporamos na metáfora de tal modo que ela deixa de aparecer, de se destinar como metáfora para a interpretação.
Reproduzindo as forças do céu e da terra, a instalação funda um gesto ritual, que leva mais além do que aquele que nele participa, repondo ficcionalmente (porque a arte não é a vida) os rituais sagrados e profanos, em que a razão das regras é em parte sempre dada, quer dizer, as regras são, desde o início, em parte desconhecidas, em parte determinadas pela comunidade, em parte já esquecidas, misturadas com desejos alheios, com figuras mal executadas, aleatórias, introduzidas em diferentes épocas, tudo de tal modo caldeado que não há história possível. Aquele que participa num ritual é forçado, à maneira do dançarino descrito na VI Enneade de Plotino, a conformar os seus movimentos a cada figura, porque a sua vontade está completamente fixada no alvo, impregnada por aquilo que a ultrapassa.
Na vida que nós temos, o ritual desagrega o gesto do protagonista num tactear cego, completamente controlado por uma regra tão férrea quanto arbitrária e passageira, uniformemente transmitida e uniformemente esquecida. Os seus modelos proeminentes são o concurso e a entrevista, rituais que retêm os que neles participam no seu próprio isolamento indigente: tudo retorna para eles, ávidos, auto-condescendentes, sem saberem da luz e da morte.
Dinamitando os jogos rituais mais perigosos e perversos – os que se enxertam nos meios de informação e comunicação –, produtores de entediantes desertos superpovoados, a instalação inscreve-se num género artístico que é, na verdade, uma forma de salvar do declínio o ritual.
A arte tem sempre a ver com a matéria, com a mudez própria dos materiais, tem sempre a ver com coisas que não poderão ser ditas. A arte deixa ouvir sons e deixa ver formas e manchas, coisas que nunca poderão ser palavras, isso mesmo que se furta a ser chamado nas coisas, uma reserva intraduzível, um recuo que não se deixa pronunciar em nenhum nome. Aí difere a arte da poesia, e, mesmo havendo interferências de uma na outra, tal não anula, não suprime nem supera essa diferença. Desse recuo, dessa reserva inapagável nasce a tensão dilacerada entre as palavras e as coisas, que os poetas conhecem tão bem.
Como muitas outras matérias, a cal é um desejo, uma visão que pertence à infância, um dos paraísos proibidos de que a imaginação gosta de se alimentar: nasceu num forno e queima, mas também protege do calor, nasceu num forno e é branca, misturada com água dá o leite de cal, que serve para branquear, torna-se luminosa e parece moldável, pronta para ser moldada pelas mãos, apetece perigosamente tocar, beber, lamber. Também se lança cal sobre os cadáveres. Isso, porém, não o reconhece o infante ou a infanta. Isso é já doutrina da morte.
Chão de cal é o nome da instalação apresentada por Carlos Nogueira no Museu Nacional de História Natural entre 13 e 29 de Janeiro de 1994. No momento em que percorremos o corredor que conduz à primeira das salas reservadas para exposições de arte, da porta que nunca se fecha, anuncia-se um imenso clarão. Entramos. A sala é quase totalmente ocupada por uma piscina de luz branca ofuscante, húmida, moldável, ondulando nas suas vagas imóveis, paradas. Semelhante ao nosso abismo, nem pequeno nem grande, a piscina é contornável ao fim de algum tempo, ainda que se caminhe em passos lentos por sobre o estrado de madeiras vermelhas e negras, marcas de um fogo que ameaça já consumi-las.
Líquida, a cal foi trazida em bidões, alisada com as mãos e uma pá. Durante os dias em que se manteve a instalação, a cal teve tempo de espessar, de secar, endurecer e abrir falhas, aproximando-se da rugosidade das imperfeitas paredes de cimento por rebocar que a envolvem. À medida que a cal endurece, a luz vai fechando-se, e a piscina acaba por se converter numa apresentação da secura, da sede, de um lento enceguecer. Trata-se de receber a luz e de caminhar no escuro, nas sombras, trata-se de esperar, de uma expectativa, espera-se o quê? que a luz se extinga, sabendo sempre já que a luz se extingue, que a extinção da luz é a coisa mais natural do mundo.
Pensamos, primeiro: nada há que seja verdadeiramente opaco. Mas, depois, descobrimos que tanto a luz como aquilo que ela ilumina são as duas frágeis e conhecem a transubstanciação porque a extinção da luz é a coisa mais natural deste mundo, a escuridão está sempre à espreita, as sombras caem, caem.
Pensamos, primeiro: o mundo é banhado por uma certa luz, de onde vem a luz do mundo? Só que imediatamente nos vem o pavor de não haver nenhuma luz no mundo. Na verdade, o que obscurece o mundo é a sua própria totalidade. É essa sombra, a noite, o elemento estranho, a estranheza que não larga o homem. Na noite, o que vem em ajuda do homem é atravessá-la ao lado de alguém, caminhando fraternalmente com alguém, até que a noite passe. Aqui, a noite não passa, aqui, a noite não passa e não volta, aqui, estamos na nossa noite. Aqui, mostra-se: o dia não é para nós, para nós é sempre agora, é sempre noite iluminada.
Como forma de arte, a instalação incorpora um uso importado de uma palavra, que na língua portuguesa adquiriu más ressonâncias, embora na sua significação mais nobre – a acção de colocar no seu lugar os diferentes objectos necessários – não pudesse a palavra ser mais ajustada à forma artística, cuja designação se fixou desde os anos sessenta.
Entre os gregos antigos, efémero marcava o que distinguia os homens dos deuses, e era pela boca dos deuses que a diferença se estabelecia. Quando se referiam aos homens, os deuses diziam: oi ephémeroi, os efémeros. E isso que era dito pelos deuses, escreviam-no os poetas, constituindo-se a efemeridade como a matéria dos seus versos, prerrogativa que os deuses ignoravam.
Não será abusivo afirmar que, na nossa cultura, assim se manteve a efemeridade entre os poetas e os artistas, até ao aparecimento das artes da vida e do corpo, nas quais se inclui a instalação.
Enquanto gesto de colocar no seu lugar os diferentes objectos necessários, a instalação transforma a efemeridade em elemento crítico, fazendo-a passar de matéria da arte a presença da arte. O lugar dos objectos é aquele que o artista encontra, dando-se o seu ponto de combustão, no momento em que a necessidade dos objectos corresponde ao lugar encontrado, o que estilhaça e redime, ao mesmo tempo, o valor de uso dos objectos. Nem todas as instalações o fazem. chão de cal consegue-o, expandindo e conflagrando as características físicas da sala do Museu Nacional de História Natural, um lugar cheio de sombras, uma espécie de ruína de um antigo, imaginado incêndio. Chão infértil, nele não pode crescer nenhum fruto, nem se edifica nenhuma habitação, chão de cal é uma paisagem, antes não entrevista, que nos espera.
O contorno da piscina é um rastro daquela linha manchada, daquela linha que não se pode apagar, mas que está sempre prestes a desfazer-se, entre aquilo que é negado à expressão e aquilo que anseia por ela. Nessa brancura tão próxima abre-se uma coisa longínqua, um longe, antecipa-se uma passagem: vemos alguém tentar atravessá-la: procura os vestígios das primeiras habitações, o enigma da existência.
Maio 1994
In Carlos Nogueira, permanência da água, Lisboa, 1994, p. 51-55.