Uma espécie de cegueira
por JOÃO LIMA PINHARANDA
1. moradas
. as obras de carlos nogueira instauram um lugar. vários lugares. o artista convoca-os. e cria-os. instrumentos de um olhar subjectivo. que deve ao saber o mesmo que ao ver.
. cada peça vive o instante do lugar onde existe. tem garantida a sua eternidade. persiste na memória que fazemos desse lugar depois de desmontada – como se ele já não pudesse viver sem esse acrescento de realidade.
as suas obras não concebem a fatalidade que deriva da fragilidade de serem coisas efémeras. são lugares para ser habitados. quer dizer, percorridos e não, simplesmente, ocupados – como o leito é o lugar onde corre um rio, como os corpos correm ou repousam e se levantam do seu leito. e um lugar onde se viveu não desaparece nunca da nossa vida.
. cada morada (obra-lugar) é a proposta de um caminho. não no centro, mas nos caminhos de cada peça, está o autor. e estamos nós. sujeitos de/a um discurso que mergulha em sentidos e tempos anteriores aos sentidos e tempos de hoje.
carlos nogueira luta contra a generalização dos «não-lugares», como um xaman clama pela reposição ritual das origens. cada peça/instalação tenta ser um lugar como uma ponte é um lugar: entre as margens dos tempos, entre as margens dos sentidos. sobre o abismo, sobre a falha que corta a continuidade geológica. ou a continuidade dos sentidos – embora utilizando a linguagem plástica que esse corte (a Modernidade) lhe proporcionou. ou fatalmente nos deixou como meio único de (nos) comunicarmos.
aqueles caminhos (obras-moradas) vão dar a um lugar (obra-caminho) que não deve ser tomado como um destino. uma verdade. e sim como um sentido (Barthes).
2. secreto vício de nomear
. podemos estabelecer a árvore das palavras utilizadas pelo artista nos seus títulos. e dos seus sentidos. obteremos uma teia de realidades comunicantes. permanências e repetições, pequenos desvios formais ou sintácticos que conduzem porém cada palavra à mesma rede circulatória.
vejamos (e sem especial ordenação ou sistematização analítica) alguns exemplos: do... ao / permanência / até ao fim / muito tempo... continuou; branco branco / sal / cal; dias cinzentos / chuvas; pintar / pintar / desenhar; gosto muito de ti / dava-te / e a ti / (man)dar / te estão abertas / ele; Malevitch / Bosch / Camões (homenagens a); céu / céu; nascentes / duas águas / água / mar / rio / rio; paisagem / paisagens; terras / terras / pedra; entre / portas / abertas;...
fica aqui estabelecido como que um labirinto. e labirinto é uma palavra que aparece apenas uma vez nos títulos recenseados (em 1996 e como que ditada do exterior pelo título da mostra de arquitectura que integrou). uma só vez. talvez porque o «labirinto» exista implícito em todos os sentidos da sua obra. certamente porque existe explícito nas multiplicações geométricas e simétricas dos seus elementos plásticos. e talvez porque carlos nogueira deseje recusá-lo. porque deseje que cada uma dessas obras seja precisamente uma contribuição para alcançar a claridade que o labirinto dificulta. «floresta», por exemplo, que de imediato nos remete para o mesmo conceito genérico de dédalo tem também uma única citação no conjunto dos seus títulos.
luz (ou qualquer um dos seus derivados) é ainda outra palavra não usada. e no entanto, porque fala em «pintar», porque «branco» (muitas vezes referido) é o peso que carlos nogueira sempre contrapõe ao negro e ao «cinzento» e às «chuvas», a luz existe permanentemente: como «cal», como «sal», como virtualidade (resultante da construção de sucessivas superfícies reflectoras). ou como realidade (utilização de candeeiros, por exemplo).
. poderíamos agora nomear os materiais de que as suas obras são feitas. as formas segundo as quais os dispõe no espaço. o que já foi feito vezes sem conta. são matérias humildes mas essenciais. por isso, carregadas de sinais: com esses seus sentidos se tecem os saberes mais antigos dos homens (e são hoje reduto final na língua de alguns poetas). e são arquitecturas básicas: estabelecendo o chão onde tudo se implanta. e de onde tudo cresce. ou repousa. e a sua vertical. através de ambos (as matérias e a sua disposição) carlos nogueira (d)escreve com elementos mínimos os limites de um espaço máximo. como quem traça mapas cifrados num frágil areal.
. carlos nogueira complementa as suas obras com títulos de respiração poética e eco mítico, criacionista (como bem o assinalou Al Berto, «A Criação da Noite por Carlos Nogueira», A Secreta Vida das Imagens, 1991). ou complementa as enunciações poéticas com obras plásticas de encenação encantatória e mágica? estamos no deserto e somos colocados na foz das coisas. no coração perdido dos sentidos. a palavra que nomeia, faz aparecer. recusa-se a imagem obscena do mundo espectacular como floresta de enganos. o que aparece é a memória de uma realidade que já só se pode ganhar indo por dentro. de nós. por isso, a ideia e a evidência da natureza são ilusões encenadas na obra de carlos nogueira. não são paisagens são mapas, já se disse. mapas para caminhar na paisagem sem a ela nos submeterem. para garantir, no tempo (no lugar) agreste deste lugar (deste tempo), um espaço para o corpo.
3. ter, dar e receber
. porque se referem ao que as olha e vive nelas (e porque existem apenas na medida em que tal diálogo se instaura) as obras de carlos nogueira exigem um corpo. um corpo absoluto. quer dizer, um corpo físico e espiritual. esse corpo absoluto é, digamos, a morada por excelência. dela já falámos acima. trata-se de (através dele, por causa desse corpo. absoluto) «ter, dar e receber». e este é o último vértice do triângulo equilátero que aqui estabelecemos (morada, nome, corpo). e é triângulo ele mesmo. cabeça, tronco e membros: «ter, dar e receber».
. «ter, dar e receber» significa trocar de vida. não mudar, trocar. estabelecer permanentes modalidades de partilha. com as pessoas. com as coisas. consigo. todo discurso/percurso de carlos nogueira nos leva a crer no seu desejo de proporcionar as condições para que, independente da sua intervenção, os outros continuem o jogo de partilhas infinitas que ele estabelece. como se se tratasse de construir uma máquina de perpétuo movimento. máquina do mundo. ou máquina para sobre-viver no mundo – querendo combater nele o que perverte o equilíbrio. corpo em busca de uma realidade edénica. perdida. de um tempo de perfeição sem tempo. de um lugar de pacificação sem limites. mas que, perante a convulsão exterior é obrigado a (re)começar a sua tarefa sempre a partir de si. do Eu como centro. primeiro momento de aproximação ao Outro. espelho, duplo ou múltiplo, isso depende do modo como cada protagonista se deseja (no) Outro e (se) deseja (d)o Outro.
carlos nogueira ocupa-se de si. dos seus e de nós. pensa obras salvíficas. colhe os frutos da sua vida. acrescenta sentido ao comum. ao humilde. ao raso. ao que resta. transforma a cal em luz. a grafite em noite. a lâmpada em sol. o mastro em árvore. o tanque em rio. o sal em mar. pedaços de uma totalidade encenada como processo contínuo.
. «olhou». Lacan escreveu que o olhar era a erecção do olho.
«para ele». ele é alguém ou alguma coisa. um homem ou um mar. um cão amarelo ou um céu.
«durante muito tempo». o tempo de olhar e ver é todo o tempo do mundo.
«continuou então a desenhar». durante tanto tempo. tanto como o que demorou a olhar para ele. ou mais ainda. desenhar é chegar onde as palavras não chegam. ou mais ainda. até chegar aqui. até se levantar o vento da tarde, salgado. e a areia correr sobre os papéis. e a luz se fazer neblina. e noite fechada. até deixar de (o) ver – como quem fixa tempo demais o sol descoberto.
Lisboa, 30 Dezembro 1996
In Carlos Nogueira, olhou para ele durante muito tempo / continuou
então a desenhar, Galeria Canvas e Companhia, Porto, 1997.