Nem sombras nem vento
por JOÃO MIGUEL FERNANDES JORGE
Esta instalação – é o termo que serve melhor o carácter instaurador que sempre tem rodeado o trabalho de Carlos Nogueira (agora presente no Sintra Museu de Arte Moderna / Colecção Berardo, Maio-Julho de 2002) – leva-me a um passo anterior na sua obra, o da sua exposição a noite e branco no Pavilhão Branco / Museu da Cidade (Lisboa, 2000).
Então, foi determinante para o meu olhar uma impressão exterior que, de um modo avassalador, irrompia pela geometria e pela frieza dos materiais – vidro, ferro e mosaico hidráulico –, até se deter, como que em dolente simpatia, nos desenhos brancos, organizados a partir de ferro, madeira, papel, acrílico, grafite e esmalte. As esculturas presentes no Pavilhão Branco prendiam-se, por sua vez, à extensa peça construção com chão branco a partir de dentro que instalara, em 98, no átrio da Fundação Calouste Gulbenkian.
O conjunto dessas obras, na evidência conjugada dos seus materiais, emitia as palavras: lá fora está a natureza. No entanto, coisa alguma parecia mais afastada de uma proximidade da natureza viva, de um mundo vegetal e animal, do que esses mosaicos hidráulicos ou as estruturas de vidro e ferro. Mesmo a plasticidade do esmalte branco dos desenhos apelava, de um modo metafórico, é certo, a esse conteúdo cognitivo: lá fora está a natureza.
A superfície imediata dessas palavras lançava-me para o «lá fora», isto é, para os jardins da Gulbenkian, em 98, e para o parque do Museu da Cidade, em 2000. A matéria das esculturas e dos desenhos distanciava-se das próprias esculturas e dos desenhos. Dava-lhes a forma, mas não era, essa matéria, a sua forma, não era a sua natureza e, muito menos, o veio por onde decorria a sua alma. A matéria – mosaico hidráulico, ferro, esmalte, vidro – não passava de uma paisagem desolada, sem relevo e sem vegetação.
Quanto à escultura e ao desenho, eles enviavam-me para montes e vales com os seus prados e bosques, rios, florestas. Pediam-me que ouvisse a sua forma primeira, a determinação da sua alma – que é um pouco mais do que ânimo, do que ardor, carácter, entusiasmo, espírito ou energia, que é mesmo mais do que ideia, modelo, vida, fogo ou sentimento – e que partisse com o espírito daquele que passeia. Percebi que não exigiam de mim que fosse um simples caminhante. Queriam mais, isto é, que fosse somente aquele que se passeia.
Assim fiz. De um modo mental. Que é aquele modo que contém um exercício concordante com a forma de uma escultura. Assisti à passagem progressiva da noite ao dia. (Passagem que, singularmente, se deixa enunciar na presente escultura que dá nome a nem sombra nem vento; como se as horas do dia e da noite se declinassem através dos dois vidros que sustentam parte da sua forma, reverberando-se em graduações de luz.)
Dei comigo a contemplar esse ritmo da luminosidade onde ele é verdadeiramente perceptível: do cimo de uma montanha, no exacto momento em que a luz ilumina os pontos mais cimeiros, enquanto a obscuridade reina e os vales são ainda domínio das trevas. Todavia não podemos esquecer que a matéria que está por detrás das esculturas e dos desenhos (eles sim, que são a fonte deste envio para a natureza que «está lá fora»), é, em si, uma paisagem nua e monótona, através da qual o olhar desliza.
Nesse deslizar vai a passagem e dela decorre o interesse daquele que passeia na natureza. É um interesse de ordem conceptual. Tão despido da complexidade de acidentes, como as linhas e os volumes desenvolvidos nas obras mais recentes de Carlos Nogueira. Um tal interesse é também causa e determinação de uma actividade que desliza (e que se move) pelo território da simpatia. O que é, por si, um (verdadeiro) «passeio» pela natureza que vai muito além da simples impressão das coisas; muito além da superfície que encadeia seduções e que transforma o livre jogo da imaginação, pura actividade de descanso, num contrato de seriedade exaustiva quer para o espírito construtor da obra proposta quer para o intérprete – naturalmente aquele que se passeia pela natureza.
A natureza vivida e observada por esse caminhante, e que se situava na orla de construção com chão branco a partir de dentro e de a noite e branco prolonga-se, agora, com nem sombra nem vento, pelos caminhos do parque da Serra de Sintra. Mas a natureza não age de forma plena e pura ao acolher aquele que (nela) se passeia; e não é através dela que ele é capaz de captar com fidelidade as coisas (que nela mesma encontra) e de lhes dar a exacta tradução dos seus fenómenos.
Esse imenso campo de entendimento interpretativo reside na disposição interior que os objectos escultóricos e os desenhos (espaço em que a extensão do branco se desdobra no rigor sobreposto de uma geometria ou de uma delineada folha cortante) oferecem.
Um despojamento dos materiais escultóricos dá lugar a uma lisura do olhar. Por seu intermédio vamos descer a uma vitalidade, a uma espécie de sopro, a uma refracção de luz. Exemplarmente conseguida na escultura «nem sombra nem vento», pelo quebrar e dividir da luminosidade que inicia o seu percurso na clarabóia da sala do último piso do Museu de Sintra e que reverbera a partir da conjugação oblíqua dos dois vidros que lhe intensificam a forma.
Por essa luz, capaz de dobrar no vidro o espelhamento de uma figura – a daquele que se passeia pela natureza – vamos assistir mais do que à procura de uma definição para o trabalho escultórico, à possibilidade de «instalar» o testemunho de uma vocação. Como se descesse sobre a figura que se revê, em surpresa, numa das faces de vidro a medida de uma representação, a um tempo, circunstância de virtude, de coragem e de alheamento que vai determinar, nessa alma ingénua e também passiva, o gosto e o saber de um naturalista.
Aquele que se passeia pela natureza está agora habituado a dissecar as coisas dessa mesma natureza. Classifica-as em categorias e vai mostrar àquele que em si mesmo foi um observador ingénuo, o que é o abandono à construção de uma arte. Através da intensidade da luz recebida pelos dois vidros de «nem sombra nem vento», a qual ora se desfaz na frieza imaginada no branco construtivista das esculturas de parede (que, de facto, são os seis desenhos) ora se completa na sensorialidade desse «sistema» de plangência branca.
Aquele que se deixou abandonar ao espectáculo da natureza perde-se agora na superfície espelhada de dois vidros e no grau de abertura que entre si estabelecem. Observa as barras de ferro que lhes servem de suporte. Segue o tracejado da luz com um entusiasmo idêntico ao que dispensou à carapaça de um insecto e à beleza da sua forma. Ele que se perdeu nas impressões de uma natureza exterior, conduziu o desenvolvimento da sua simples e fria curiosidade para o mais dentro da imagem fornecida por esses dois vidros. Capaz, que foi, por um tão grande interesse pelo plano natural das coisas, pelo correr da água dos rios e das nuvens, ele, aquele que passeia na natureza, desdobra-se na sua imagem.
Intacto, permanece na sua figura. Fora e dentro do vidro. Encontra na escultura e na plasticidade dos desenhos, que no seu todo dão forma a nem sombra nem vento, o reconhecimento do conhecido, acção conjugada de todas as suas forças sobre o pulsar do seu coração de caminhante.
Nem sombra nem vento. 1. Escultura (ferro e vidro, 450x150x150cm, 2001).
Há uma certa variabilidade na sua altura, apesar dos programados 150 cm. Digamos que a própria luz acentua ou reduz, num jogo de escalas e de visualidade, o exacto da sua dimensão, a par de qualquer exigência do espaço onde a escultura esteja a ser instalada. Os brilhos atenuam-se ou incendeiam-se não só em relação à luminosidade que a clarabóia da sala de Sintra lhe concede, como consoante as figuras que se projectam e entrechocam no espelhado dos vidros.
Sobre um chão de madeira prensada com cimento, que evidencia uma tonalidade cinza e permite uma área levemente ondulatória ao redor da escultura, erguem-se as duas barras de ferro. Situam-se face a face na sua estrutura quadrangular, da qual se eliminaram os tramos cimeiros. Sobre os seus quatro extremos estão apoiados dois grandes vidros. Inclinados descansam, contíguos.
A sua obliquidade torna parte por demais evidente da escultura, o ângulo formado pelas duas folhas de vidro. Elas pertencem uma à outra. Para o compreendermos melhor, bastaria que as fizéssemos girar sobre o vértice de união e as aproximássemos, de modo a que uma à outra aderissem. Fechando-se uma e outra na mesmidade que entre si contêm e guardam, veríamos desfazer-se ou recolher-se a um mais íntimo lugar o triângulo que na escultura apresentam. Triângulo de lados iguais. Mas o lado inscrito no que seria a face cimeira existe apenas no espaço. Existe e não existe.
Tem consigo um existir em tudo semelhante «àquele que se passeia na natureza». Uma espécie de transcendência da vida – quer da vida de triângulo quer da vida de passeante – que sustenta a sua vitalidade e que, ainda mais, faz com que permaneça a conservação instintiva dessa vitalidade. É que esse triângulo que sobre si se vai fechar, ao fazê-lo preserva na sua intimidade não só todas as imagens que no espelhamento dos vidros deslizaram, como as das próprias figuras que deles se aproximaram. Também todos os focos de luz e todas as intensidades de sentidos que os lados dos vidros sofreram aí vão permanecer.
Uma constante sobre-abundância de imagem é o que está aqui. E em tudo semelhante à exuberante rede de contornos paisagísticos que traz consigo aquele que se passeia na natureza.
Projecta-se no vidro a estrutura de ferro que o suporta a um e outro lado. Golpeiam a escultura e também se expandem pelo chão (instância criada para a instalação da peça escultórica na sala de exposições temporárias do Sintra Museu de Arte Moderna / Colecção Berardo), listas de luz e grânulos luminosos. Vindos da clarabóia, repercutem-se, alternando crueza com suavidade. A cada momento se assemelham a últimas palavras e, nem sei porquê, a um qualquer sofrimento infligido.
Aparentemente tudo «corre» sob um sentido que instaurou uma medida de edificação que se desenrola num plano mínimo. Mas só de um modo aparente, pois o que nos guarda esta escultura de nem sombra nem vento é uma complexidade de saber e não saber. Basta, para tanto, procurar os múltiplos pontos de fuga e as figuras de recolhimento que enviaram para o espaço «entre vidros» a brevidade das suas fórmulas de vida.
(Vidros que somente na ultrapassagem da sua carga ilusória e enigmática poderão ser entendidos como parte de coisa simples e pobre. Eles guardam um desenvolvido grau de concepção e de exercício óptico, a par de um domínio de equilíbrio de forças físicas, que é comum encontrarmos na escultura contemporânea. Será suficiente referir, como exemplo de um uso de significado tecnológico, o tratamento que conduziu ao acentuado espelhamento dos vidros, sem que eles sejam exactos espelhos. E essa «qualidade» capaz de decidir muito do conseguimento exuberante – que me desculpe Carlos Nogueira o que possa haver de rude e de supérfluo neste sentido de exuberância, tão preso a uma superabundância e intensidade –, através de um esmaltado conseguido pela opacidade de uma película metalizada, vai possibilitar a afluência de imagens e a alta fluidade da luz e do tempo dessas mesmas imagens.)
Exuberância que é aqui uma singularidade criada pelo mantimento de uma expressão líquida, encontrada na figura (maior e, mesmo, simbólica) da água. Pertence-lhe, em limite, a conservação instintiva de toda e qualquer imagem projectada nos vidros ou no espaço de vazio (e de escultura) que entre os vidros ocorre.
A água e o espelho são como um mundo da vida que se move, em legitimidade, no espaço de toda a instalação. Nela incluo as próprias paredes da sala e dou importância decisiva à luz que a clarabóia do tecto vai lançando ao longo do dia. Pois por meio dessa luz se transforma em transparência visível o invisível; e se instala no espacial triângulo, entre vidros, a experimentação de uma medida e de uma pura percepção.
Nem sombra nem vento. 2. Seis desenhos e cortantes (ferro, madeira, grafite e esmalte, 1988- 2000).
Devo ser correcto no enunciado destes seis trabalhos que deverão ser vistos como uma forma de identidade única. O seu título surge com um sentido interactivo: «seis desenhos e cortantes para nem sombra nem vento». Desliza quer para a escultura quer para o título de toda a exposição. Parece-me ser este o momento em que devo apelar para a presença de uma obra do acervo da Colecção Berardo: Due Ragazzi alla Fonte (1962-75) de Michelangelo Pistoletto. Também nessa serigrafia sobre aço inoxidável tudo se reflecte. O mundo da vida passa sobre a imagem dos dois rapazes, enquanto permanecem indiferentes, atentos que estão ao fio de água que corre da torneira da fonte para a vasilha de plástico.
Um fio, não de água, mas de tempo, fixou-os. Prendeu-os à imagem de si mesmos e reduziu-os a um par de domínio: como na escultura de Carlos Nogueira passa sobre eles o elogio do olhar de múltiplos focos luminosos; e, como nos vidros de «nem sombra nem vento» contém e não contém as formas que dentro de si se precipitam. Depois, esses dois jovens de Pistoletto são um par. À semelhança dos seis desenhos que também estão organizados dois a dois, conjugando entre si o esmalte branco que cobre a totalidade dos geométricos relevos. O ferro estabelece a linha cortante, essa espécie de validade introduzida pelo tempo.
Olhemos, de novo, para os vidros da escultura e para a folha de aço que sustenta a representação dos dois rapazes. Aí, a validade quer dizer uma temporalidade flutuante. Com rigor os objectos projectados, quase sempre corpos, para além de todos os sinais de luz, nunca lá se encontram, nunca lá estão, nunca lá estiveram, nunca existiram nessas superfícies espelhadas. Apenas foram uma passagem, um ser como eu ou como tu, «coisas» que se perdem dentro e fora dos limites de um simples objecto perceptivo. As evidências desse mundo de vida não passam de uma intenção no sedutor caminho da arte; e, todavia, todos os pormenores foram pensados, reduzidos à simplicidade da sua eficácia visual. De um modo bem claro, o que resistiu não passou de um pequeno fim do mundo.
No seu todo, os vidros da escultura contêm um campo de pesquisa. Recebem um duplo aspecto: a duração do mundo e a duração da vida; e esta é incomparavelmente mais veloz. Estão presentes conceitos que foram caros aos suprematistas, quando retomam a crítica platónica da arte-ilusão, da arte como simulacro e da arte-repetição.
No seu todo, o corpo dos seis desenhos brancos intensificam o pendor místico de um «sem fundo», pois eles são, na sua massa branca e brilhante cortada por insinuantes geometrias, a revelação do abismo. A assemblage(ferro, madeira, grafite e esmalte) que dá existência aos desenhos (ou às esculturas de parede) aproxima-se do conceito de «excitação» malevitchiano. A massa branca amalgamada dos desenhos fala-nos de uma repetição dos sentidos actuando sobre o suporte de madeira e leva esse repetir a um ponto distante. Tão longínquo como possa ser a tentativa de limitar o ilimitado. Na planura da grande «estepe» branca desses desenhos, a «excitação» desliza como um pensamento dominante, que procura, ao modo de Malevich, evitar a perdição do não-figurativo. Talvez por isso desliza (o verbo deslizar faz nestas obras cada vez mais sentido) a figura humana, a par de enlaçantes formas de desejo (que são os encadeados luminosos), ao longo de uma excitação sem causa, «sem número, sem precisão, sem tempo, sem espaço, sem estado absoluto ou relativo» (Malevich,Dieu n' est pas détrôné).
Nem sombra nem vento. É um título que envia para um tempo final. Para uma desrealização progressiva da realidade. Por isso, Carlos Nogueira tem construído o seu trabalho mais recente com materiais tão comuns a um «real» contemporâneo. São materiais por onde se edifica a superficialidade e a indiferença que prevalecem. Os mosaicos hidráulicos, aglomerados de madeira em que o cimento é introduzido como elemento aglutinador, o ferro, o esmalte. Usa-os com a intenção de poder romper a exterioridade e o desapego. É esse o motivo, é essa a justificação para a presença do termo «cortantes» nos títulos dos seus desenhos.
Uma estreita tira de ferro desenhando, em geral, um ângulo recto sobre a superfície do esmalte branco está aí precisamente com esse sentido, com essa inclinação de intensidade: ferir, cortar e por fim atingir, à semelhança da faca de gelo referida por Kafka, o coração gelado do torpor.
Todos os títulos trazem consigo um acto de recepção. São uma forma dotada de significado. O seu conhecimento implica um querer entender, um situar o objecto nomeado, procurando rodeá-lo de uma inteligibilidade informativa. Nem sombra nem vento fala-nos de um provisionado vazio. Este título «trabalha» com o seu próprio tempo e quer encontrar nele não a desistência absoluta do vazio, mas um diálogo interrompido. (Vejamos, mais uma vez, os corpos que confundem a brevidade da sua duração com o tempo metafísico dos vidros, deixando-se surgir carregados de um ânimo – desígnio que não lhes pertence e que inteiramente se deve ao artifício da arte, à sua manufactura – sobre o qual se sobrepõe a nudez e a inocência de uma filtrada luz solar. Tenhamos em conta esse fio cortante que emerge do tão quente desespero do branco.)
Beyond the very edge of the earth (600x300x132cm, ferro, mosaico hidráulico e vidro, 1997-98): escultura urbana que esteve instalada num complexo institucional, em Londres. Surge-nos como uma imensa casa sob a forma de L, como uma fortaleza, como um canal que sobre si mesmo se dobra. Existe com a finalidade de nos conduzir «além da própria margem da terra». É um grande espaço aberto para a claridade ou para a tempestade solar (semelhante ao que acabámos de encontrar na escultura «nem sombra nem vento» e que gosto de aproximar das extensas esculturas em tijolo de Per Kirkerby), disposto a virtualizar subterrâneas afinidades estruturais e evolutivas na obra de Carlos Nogueira.
A escultura de Londres – refiro-a deste modo – parece-me poder representar um elo entre todos os seus trabalhos a partir de meados de noventa. Sobre todos eles lança uma paixão intacta. Tem-lhes reservado um círculo hermenêutico; um processo de configurações ao redor de uma constante apropriação de materiais que, vindo de uma programação industrial (onerados com todo o seu peso de brutal indiferença), se vão perder (e encontrar) numa procura de origens. Uma espécie de reduto ecológico, onde a busca de origens não é exactamente a demanda de qualquer princípio, mas de um modo que torne visível a multiplicidade e a variedade do existente. Uma modalidade que determine uma presença além de sombras e de temerosos ventos.
Encontro num poeta, já deste século, palavras que podiam refugiar-se nesta tão conseguida arte de Carlos Nogueira. São versos (e não é a poesia arte mais pobre do que toda arte pobre?) de José Miguel Silva (Ulisses já não mora aqui, 2002): «Tempos houve em que das torres das igrejas / se avistavam os limites da cidade (ou era / da verdade?). Mas foram, como sabes, encolhendo. / Pouco a pouco fomos vendo, impossíveis / de limpar, as nódoas nos tecidos mais amados, / o nastro dos afectos desfiado pelo vento. / Desbotaram os caminhos, alargaram os casacos / e a sombra dos sobreiros, quem a viu e quem a vê.»
O conseguimento de uma obra reside não só na sua predicação, o que envolve a compreensão que o próprio autor dela tem, mas no entendimento que reside no apelo que dirige a cada um dos seus espectadores – a cada um daqueles que vê a sua imagem formar-se entre os vidros de «nem sombra nem vento». Ele vai dizer: compreendi. E mesmo que tenha compreendido uma coisa bem diversa, não tem mal. Ele compreendeu; e isso faz parte do processo de compreensão entre os homens; e sempre representa um acontecimento interior de alguém, seja quem for, consigo mesmo.
2002
In João Miguel Fernandes Jorge, Processo em Arte, Lisboa, Relógio d' Água Editores,
Fevereiro 2008, p. 107-113.