Quatros linhas, dois pontos: para cn
por DIOGO SEIXAS LOPES
Aos primeiros passos, um obstáculo. O texto estaca e debate-se: como escrever sobre a poesia, como não acabar a escrever contra ela? «Excesso de poesia, excesso de palavreado, excesso de metáforas, excesso de nobreza…», queixava-se o polaco Witold Gombrowicz no seu texto Contra os Poetas. Com tais arremedos não se consegue de facto falar do que Carlos Nogueira faz. Mas o seu desígnio é esse, poesia num campo expandido de acção. Tomá-la como a sua disciplina primeira em detrimento da arte não é linear mas o texto decide-se e avança por aí.
Na verdade os títulos e memórias descritivas das suas obras entram sem hesitações pelo género lírico, tomam até a forma de versos e estrofes. Numa considerável parte dos ensaios sobre Carlos Nogueira raras são as menções a estes versos, a que o próprio chama de pormenores. Entenda-se pormenores como detalhes técnicos, iguais aos desenhos ou estudos que acompanham o processo de produção das suas esculturas e instalações. Todos estes materiais se equivalem e não se distinguem: este é um projecto indivisível. Num exercício de radical condensação poder-se-ia mesmo imaginar uma retrospectiva que mais não fosse do que essa colecção de poemas onde por uma vez são usadas palavras sobre espaços, estruturas ou superfícies que parecem dispensar qualquer ruído. Elas aparecem-nos como aforismos ou prelúdios ao corpo-a-corpo com a obra e a sua leitura não descarta um certo sentido de solenidade.
Se pouco se abordou essa escrita e os seus significados talvez seja por não se querer trespassar a última franquia do que já não pode ser soletrado. Só um estado poético arrisca esse salto no escuro, dispondo-se a tudo, ao ridículo mesmo («por delicadeza, perdi minha vida», Arthur Rimbaud). Confrontamo-nos pois com o incómodo do literário, do palavreado, das metáforas, da nobreza. Os poemas de Carlos Nogueira são o ponto de massa crítica do seu trabalho, onde tudo fica suspenso entre o voo e a queda das suas criações. São também a emancipação de «uma arte pela arte», consciente de si e dos seus sistemas formais e teóricos. Com a aparente delicadeza de quem perde a vida, o que se proclama é uma poderosa independência desses mesmos sistemas. Não se pode medir o universo confinado a quatro paredes.
desde uma oliveira, colina abaixo até à rua, uma floresta / como um rio
Duas fiadas de prumos brancos acompanhavam lado a lado o caminho que partia da oliveira e descia até às faixas de rodagem de uma das saídas de Lisboa. «Um exército de mastros brilhantes»(1) fora posicionado em terra de ninguém para um programa de arte pública (1993): as suas unidades perfilavam-se em cadência metronómica e rasgavam com as pontas o céu atrás do morro. Em fotografias a preto-e-branco sobressai um gesto de desenho, não só pelo riscado feito no horizonte mas também pelo ângulo formado entre as linhas verticais e a pendente do terreno.
Num estudo de implantação estavam marcados a tinta-da-china arcos de circunferência e triangulações como numa carta militar. É um desenho rigoroso que aponta em medidas absolutas o alinhamento e a sua orientação para com o aqueduto mais à frente. Mas a árvore solitária em contracampo com o feixe de automóveis na avenida pulverizava qualquer hipótese de se tratar apenas de um exercício de geometria. Com o exército de mastros brilhantes em sua guarda, a árvore fundava um lugar no meio de nenhures pelo tempo que já trazia consigo. Não se deixava afectar pela agitação em redor e a sua presença propagava-se na luz e ar que passavam entre os prumos. As cintilações nas folhas, o seu restolhar com o vento eram amplificados por esta transmissão iridiscente e sibilante. Mais que um monumento, era uma atmosfera ou até um micro-clima (…uma oliveira … uma floresta … um rio).
Outra possibilidade, a de ser um portal. Era percorrível (o caminho fora preparado) e habitável (por debaixo da copa da árvore), estava imerso em nós rodoviários e edificado avulso mas pairava ao lado dessas coisas e na sua cota máxima todo esse mundo se transfigurava. Mas não havia sequer margem para analogias nem se encontravam marcas de autor, apenas uma série de elementos colocados ali respondendo a uma natureza própria. Uma realidade que parecia anteceder as suas redondezas pois estava fora do tempo, uma natureza antes do tempo.
(…)
Mais tarde, porém, o movimento fez-se em introspecção numa sala do Museu Nacional de História Natural. Nela fora vertida cal líquida cobrindo o chão, um manto branco acima do qual um estrado de perfis metálicos e contraplacado permitia circular à volta. Desta plataforma podia ser estudada a ocorrência geológica no compartimento, a sua infinitesimal mas irreversível transformação: com o correr dos dias o leito secou e, petrificado, foi fendilhando até ser devolvido ao pó.
O contexto era indicado ao fenómeno, que se desenvolveu num sítio onde são depositados espécimes minerais. Mas o seu alcance não era contido por aquelas paredes toscamente rebocadas; derramava muito para lá delas num espaço e tempo sem limites. À semelhança de um laboratório foram criadas as condições para a prefiguração de uma ordem universal, a da matéria cingida ao ciclo pré-socrático da terra, ar, água e fogo.
No encontro da arquitectura existente com a massa informe que a preenchia relembrava New York Earth Room(1977) de Walter de Maria, que depositou uma espessa camada de solo no piso de um edifício dessa cidade. A sua aparição num interior da paisagem urbana originou uma ecologia entre o natural e o artificial que perdura até hoje. Fazer da terra uma medida do tempo é nestes casos promulgar a sua permanência enquanto suporte da nossa existência, para lá de todas as construções. Como em chão de cal (1994), a terra prevalece sobre elas e antecipa a sua dissolução. Num curto instante do seu arco de vida foi emoldurada para sublinhar essa lei.
Mas antes de qualquer aforismo o que fica é um desenho, capaz de se ir executando a si próprio. O estrado de onde era observado não mais seria que o seu vibrante passe-partout, um ligeiro aceno à cor numa peça atonal como em Kazimir Malevitch ou Piero Manzoni. A folha deste desenho fez presa, o que lhe rasgou linhas. A pouco e pouco, a luz incandescente projectada sobre ela foi sugada pelas linhas até que, já exaurida, fecharam-lhe as portas.
construir um lugar, uma parte dentro, a outra, do outro lado
Imaginemos que o manto branco tinha estado sob pressões e temperaturas tão altas que, por um processo metamórfico, a cal se tornara mármore. Em vez de falhas mostrava veios e as marcas de talocha eram agora uma rigorosa esquadria que a dividia em módulos. Este espaço seria uma cristalização do anterior, um quartzo que projectava para uma dimensão virtual depois da imersão antes sentida no real. O tabuleiro de pedra sobre o qual se fazia o seu reconhecimento produzia de imediato um efeito de levitação no visitante. Apropriadamente entrava-se nesse campo de gravidade zero por um feixe, uma estreita passagem para o «outro lado». Muito diferente pois da subida processional em rampa até ao estrado do manto branco de cal.
O manto branco de mármore – a ver (1998-2002) – era uma coisa mental, incorpórea, com pouco mais do que já foi dito: vinte e sete unidades adicionais de pedra numa formatura de nove por três, dois espelhos transparentes de duas faces em extremidades opostas e lados diferentes da sala, esta dividida por um sulco longitudinal com pedaços de carvão e cinzas. Ficava por apurar a profundidade deste traço negro num entorno tão alvo, como aliás ficava por demarcar a extensão do plano. Outra vez se pressentia que não findava nas paredes em volta, nem sequer naquele edifício (de novo um museu, desta feita de arte moderna).
No que antes podia ser interpretado como o celebrar de uma alma primitiva aqui era contraposto um mais que afinado orquestrar das partes na tensão entre a antecâmara (vazia) e, do «outro lado», a câmara (vazia). Citando Le Corbusier, esta era uma «caixa de milagres» fruto da prestidigitação, da estereotomia e da óptica. Mas também do orgânico que carbonizou e virou mineral, um leito a correr por baixo do manto, o lastro do que ficou para trás na sua ascensão a um estado para lá da matéria. Redundando e contradizendo: esta é uma minuciosa forma artística que não enjeita a experiência estética do sublime.
com a luz que ainda havia / fez-lhe chão
A viagem termina numa casa. Deste itinerário de arquétipos talvez seja o mais pungente, tão ligeira é a sua constituição. As fundações em ferro e vidro marcam um rectângulo cujo comprimento é o dobro da largura; os planos são levantados num único movimento em espiral com tábuas de madeira sobrepostas nas extremidades. Das frestas vislumbra-se apenas o interior e a luz que brota dele. Mais que paredes são cortinas erguendo uma habitação volátil.
Na eventual necessidade de filiar esta construção para lugar nenhum (2002-2003) aos termos da arquitectura cortem-se os paralelismos pela raiz dado que ela existe antes dos sistemas técnicos e significantes dessa disciplina. A esta casa basta-lhe o céu estelar como tecto e a sua escala não é determinável. Da extrema precisão com que os seus materiais são assemblados resulta uma coesão topológica mais que qualquer reducionismo tectónico. Não se encontra pois subordinada a um espaço domesticado e cartesiano pertencendo antes aos territórios do espaço mítico.
O parentesco fixado pelo minimalismo para com determinadas estruturas arquitectónicas, em particular uma sua condição auto-referencial e tautológica, é marginal a esta identidade. Laços de sangue mais facilmente se avistam com o trabalho do norte-americano Richard Tuttle onde, com desconcertante economia de meios, pequenos artefactos tanto remetem para o molecular como para o galáctico. Em ambos os casos o enigma é preferido ao axioma e, por oposição ao cânone minimalista, o símbolo é activado para libertar a energia embebida nos seus alicerces.
A casa vive assim incendiada por uma mágica primitiva, a do fogo da poesia à qual este texto regressa: «andava um homem à procura de si / quando reparou que as searas tinham sido incendiadas / o mar se desregulara / e o sol ardia de outra maneira / com as mãos que pôde dedicou-se a juntar pedras / e o que restava / a construir uma casa geométrica com abertura para cima / no sentido ao contrário da paisagem e das casas / que até então conhecera.»(2) Esta é a sua linguagem indomável: sem adjectivos, sem retóricas, sem linguagem. Esta é também a sua arquitectura: sem nomenclaturas, sem tratados, sem arquitectura.
Pode simplificar-se dizendo que são apenas textos, desenhos, esculturas. E que um misticismo que por eles também passa convive subtilmente com declinações às aventuras da land art ou da arte povera, por exemplo. Inocência e intencionalidade entrelaçam-se na ética de um fazer desde sempre e até sempre. Em «edições de autor» vêm sendo, documentando esse percurso, suportes totalmente biográficos da sua independência e integridade: os seus livros de horas. Reiterando essa ideia o formato é fixo, portátil como um relicário que pressupõe a sua prévia e póstuma tiragem in memoriam. Letras e imagens esparsas sucedem-se numa austeridade monocromática contradita pela tactilidade das páginas; com relevo ou verniz, em papéis mates ou brilhantes. O resultado desta combinação é um objecto chiaroscuro, palpável e sequencial. Obras por direito próprio, iguais às restantes, encerram dentro de si outros textos, outros desenhos, outras esculturas. Num caso, foi posto logo na entrada um cartão prateado à esquerda e uma fotografia a preto-e-branco à direita. É uma vista do Cabo Espichel a partir de um banco de pedra, seu posto avançado. A paisagem reflecte-se invertida no cartão e com ela a nossa face. A linha de cosedura das folhas passa a bissectriz de um auto-retrato vertiginoso, nosso e de Carlos Nogueira naquele lugar. Desse encontro fica apenas por dizer a palavra que nos levou até lá: aqui.
(1) João Luís Carrilho da Graça, «Travei o Ford Fiesta» in Carlos Nogueira, Permanência da Água, Lisboa, 1994, p. 34.
(2) Texto de Carlos Nogueira afixado na antecâmara da exposição construção para lugar nenhum.
2005