Num instante todo o tempo
por MANUEL AIRES MATEUS E VALENTINO CAPELO DE SOUSA
O trabalho de Carlos Nogueira concentra o tempo. Na sua discreta forma, cada obra repropõe inteiro o universo. Como se, por mais simples que se apresente um resultado, nele ficasse inscrita de algum modo a complexa operação que o antecede. Assim parece possível encontrar num instante todo o tempo e em cada ponto o espaço inteiro. Assim parece evidente que uma só partícula contenha toda a matéria, ou que um único elemento encerre o infinito completo.
Pondo em cada gesto toda a determinação de uma demanda permanente, Carlos Nogueira opera no limite da essencialidade. A obra cristaliza o percurso criativo, funcionando como sereno depósito da sua energia, do seu irreprimível pulsar.
Justapondo criteriosamente materiais vulgares, o seu trabalho mergulha-os num processo de ressignificação profunda. A pesquisa convoca materialidades distintas, da mais densa à mais etérea, e subtilmente provoca alterações radicais da sua percepção. Partindo da condição inicial de cada elemento, e mesmo que a ela retornando, as construções propostas sugerem sempre múltiplas novas pistas de apropriação.
Compondo invariavelmente estruturas de enorme rigor métrico, evidencia-se por outro lado uma ordem conceptual que contraria as leituras mais empiristas. A obra de Carlos Nogueira parece radicar numa geometria organizativa própria, mais analítica que descritiva. Na escolha dos seus temas adivinha-se uma motivação numerológica; nos seus métodos, operações aritméticas.
Propondo a instauração de um novo centro, de coerência matérica e matemática própria, a obra reclama por sua vez um interlocutor. Um corpo que explore a sua escala ínfima, que percorra o seu território imenso; uma alma curiosa, sensível e inteligente.
Dispondo as suas construções em espaços reais, concretos, cada intervenção constitui, também, uma reflexão sobre a singularidade do lugar. Numa abordagem quase arquitectónica, a chave de leitura do sítio é o próprio projecto da sua transfiguração. Tal não sucede pela alteração do existente, mas pela demonstração das potencialidades nele inscritas, através do reflexo da obra em confronto.
Opondo com frequência pares de contrários, as instalações apresentadas resgatam-nos ao mesmo tempo da contingente circunstância dos lugares e dos objectos. A concretização física de entidades abstractas, como o interior e o exterior, o cheio e o vazio, a luz e as trevas, remete-nos para um mundo exclusivo de absolutos, onde o nosso lugar é uma indefinição intersticial.
Sobrepondo tempos, lentos de reflexão, lentos de execução, o seu trabalho ganha consistência e permanência. Cada obra invoca memórias colectivas das experiências mais primeiras e elementares, que aglutina e comprime num novo momento, pleno de intencionalidade. Projecta-se depois sobre outros tempos, incontroláveis, que são os de quem a experimenta, entende, e recorda, ou não, e como.
Repropondo insistentemente temas quase repetidos, o percurso de Carlos Nogueira constitui também um desafio. Para além da mera contemplação estética, por quanto tempo mais conseguiremos acompanhá-lo na sua incessante busca e descoberta da verdadeira natureza das coisas mais simples, e da nossa própria?
Lisboa, Junho 2003