Diante do sol que nos olhos luz
por JOSÉ AUGUSTO MOURÃO
Perfectio omnium eorum quae sunt in ordine universo, est lux.
S. Boaventura
O sol bate-nos nos olhos como nós batemos a uma porta que não se abre.
Pascoaes
Não poderia ver bem a luz que brilha sobre o muro se não voltasse os olhos para onde ela jorra. E mesmo aí, se a capto onde ela jorra, preciso de ser libertado desse jorrar; devo captá-la tal como ela plana em si mesma. E mesmo assim direi que não deve ser assim. Não a posso captar nem no seu contacto nem no seu jorrar nem mesmo quando plana em si mesma, porque tudo isso é ainda um modo. É preciso captar Deus como um modo sem modo, como um ser sem ser, porque não há modo.
Eckhart
Antes do aparecimento do espelho a pessoa não conhecia o próprio rosto senão reflectido nas águas de um lago. Depois de certo tempo cada um é responsável pela cara que tem. Vou olhar agora a minha. É um rosto nu. E quando penso que inexiste um igual ao meu no mundo, fico de susto alegre. Nem nunca haverá. Nunca é o impossível. Gosto de nunca. Também gosto de sempre. Que há entre nunca e sempre que os liga tão indirectamente e intimamente?
No fundo de tudo há a aleluia(1).
Clarice Lispector
A Obra de Carlos Nogueira corresponde adequadamente à ideia que se faz Merleau-Ponty ao falar de estilo em arte como «o emblema de uma maneira de habitar um mundo» (Signes 67). Não estamos diante de uma estética que trabalha sobre um fundo niilista ou que produz jogos de formas e mundos de «ficção pura», alérgica à impulsão de criar mundos e de se construir sobre o que move o mundo. Estamos diante daquilo que faz da obra uma individualidade singular. Um modo singular de lidar com os objectos, as formas, o espaço, a luminosidade, o fulgor e o som que está entre sistemas de espaços diversamente organizados e que contraria o empobrecimento da percepção ressemantizando o «mundo» e dando lugar à factitividade do objecto.
É verdade que a beleza, para surgir, requer uma fronteira (real, imaginária) que separa a obra de arte do mundo exterior; a noção de sagrado necessita duma delimitação espacial com o mundo profano. Porém é o carácter indizível, inefável desta estrutura dinâmica mental que está na origem do sentimento de beleza, dizia Thom. Pela Idade Média adentro, o belo é definido como consonância de partes e luminosidade. Todas as aproximações em torno da definição do belo estabelecem uma associação entre esta ideia e as de luz e fulgor. É esse o resultado que Carlos Nogueira consegue na Instalação longe e brilha ao estabelecer o dialogismo entre o espaço do Centro Cultural e a capela da Misericórdia de Sines, um espaço primitivamente sagrado e agora na passagem do sagrado ao profano.
Habitar
A morada é para o homem o domínio aberto à presença do Deus (do insólito). O homem habita, na medida em que é homem, na proximidade do Deus, dizia Heraclito. Para os Gregos, o templo prova a familiaridade essencial dos deuses e dos homens. O templo abriga os deuses – mas os deuses já lá estavam. A igreja obedece a uma outra lógica – a do não-lugar. Nós não vivemos nas igrejas. É no acto litúrgico, isto é, no circuito vivo do dar, do rezar, do receber e do pensar que se dá forma àquilo que nelas somos. A igreja não se propõe como espaço instituído duma existência definitiva e o seu pórtico não separa as misérias da história das alegrias do eschaton. Propõe outra coisa: o lugar de uma antecipação frágil. O intervalo durante o qual o habitamos, o tempo dum culto ou duma contemplação silenciosa, põe fora de jogo as leis que o mundo e a terra fazem pesar sobre nós. Não nos arranca à história, ao mundo, à terra. A temporalidade, a corporidade e o encaminhamento para a morte falam-se neste espaço e este reenvio constitui a estrutura elementar da nossa presença no mundo ou na terra. Se ligamos topologia e liturgia é porque o lugar não pode ser pensado independentemente do corpo. A «dança» litúrgica diante de Deus denuncia com os pés na terra qualquer interpretação da corporidade que a reduza aos limites da inerência. Rosenzweig, em resposta a Totem e Taboude Freud sustenta que a função da Revelação é restituir o mundo à sua realidade não religiosa(2).
Um estilo dá-nos in vivo uma maneira de habitar um mundo. Esse é também o gesto criador de Carlos Nogueira. Esse o seu dom, utilizando materiais basilares usados na construção das igrejas, a pedra, o metal, o vidro segundo um alinhamento perfeito e um diálogo entre salas: uma que trabalha o escuro, a outra o dia. Com esses materiais Carlos Nogueira reconfigura o espaço, levando o visitante a habitá-lo de uma forma inédita. Aí está toda a diferença: não se trata de «ir à igreja» assistir a um qualquer ritual, trata-se de praticar um espaço que deixou de ser «sagrado» e que, por graça desta performance readquire o seu potencial de desterritorialização. A laicização da sociedade modificou o estatuto sociolectal da competência que nos permitia decifrar a iconografia transmitida pelos objectos religiosos. Hoje só os historiadores da arte ou os religiosos são capazes de entrar nesse mundo e de o decifrar. Esta Exposição não reintroduz no espaço perdido, abre sim de uma sala a outra, do outro lado da rua, um percurso figurativo que não pode ser lido separadamente. As paredes grossas da sala ao lado da capela, com portadas meio-abertas, em que se expõem seis desenhos brancos e mais seis, de onde se vê o mar ao longe e os restos das fábricas respondem à sala completamente às escuras. O espelho, o vidro fosco, a luz no chão que potencia os brilhos, a superfície de madeira montada numa caixa de ferro em aço cortante, o branco brilhante e o branco baço mantêm o diálogo entre as duas salas.
O espelho do mundo
O acontecimento singular é aqui o espelho transparente: particular e admirável, a lembrar a sua etimologiamiror(3). A (omni)presença do espelho, ou do vidro na Obra de Carlos Nogueira suscita algumas aproximações com aquilo que, por exemplo , H. Duméry no começo da sua Philosophie de la religion diz da religião: «a religião é um espelho antropológico perfeito» (PR I, 1). Aí estão todas as capacidades projectivas do espírito humano, ou significa que o espelho apenas dá ao homem uma imagem invertida de si mesmo?
Falei da factitividade do objecto. Poder-se-ia mesmo falar de «sub-objecto» à maneira de Zilberberg(4). O «sub-objecto» é capaz de modalizar o sujeito surpreendendo-o, rompendo com os seus hábitos perceptivos. Sabe-se que «o signo pode ser usado para mentir porque posso produzir o signo mesmo que o objecto não exista (posso denominar quimeras e figurar unicórnios), enquanto a imagem especular só produz em frente o objecto», escreve Umberto Eco(5). E dado que o espelho é prótese, nós vemos a pinta (no nariz) como a veríamos na mão. A imagem especular nunca mente. Em último caso, só o tempo pode tirar o retrato dum rosto porque só ele o desenha.
Esta Instalação não tem nada de especulativo. O termo «especulativo» pode entender-se em dois sentidos distintos, conforme as etimologias a que nos reportemos. Há um eco dessa distinção na declaração de Tomás de Aquino: «speculatio dicitur a speculo, non a specula» (IIa, IIae 180, 3). Specula é o promontório de onde se contempla do alto, em posição de sub specie aeternitatis, uma determinada paisagem. A razão especulativa representa para os filósofos anglo-saxões poderosas suspeitas de evasão ilusória. Já para Whitehead a tentativa de produzir um quadro coerente, logicamente necessário, dum sistema de ideias gerais capazes de dar conta de todos os aspectos da nossa experiência, continua a ser uma tarefa fundamental da razão como tal. Speculum é o espelho, se possível duma pureza perfeita, em que se reflecte tudo o que existe. E aqui encontramos duas tradições. A metáfora do espelho, com um papel importante na filosofia platónica e neoplatónica, recebe uma significação suplementar no cristianismo. Richard de Saint-Victor, apoiando-se em determinados versículos das cartas paulinas (2 Co 3, 18; 1 Co 13,12), elaborou uma teoria dos graus de contemplação, em que a «especulação» designa um estádio inferior à visão beatífica propriamente dita. Na confluência da tradição neoplatónica e cristã, o tratado de Nicolau de Cusa Directio speculantis seu de non-Aliud ilustra bem as aspirações duma razão especulativa preocupada com contemplar tudo à luz do Absoluto, transcende todas as oposições. A segunda linha de força liga-se à distinção aristotélica entre as ciências teoréticas (que Boécio traduz por speculativa) e as ciências práticas. No que se refere à filosofia da religião, é determinante a distinção kantiana entre o «entendimento» e a «razão especulativa». O primeiro é o poder de julgar. A razão é a faculdade de produzir ideias transcendentais: o Mundo, a Alma, Deus.
Na Obra de Carlos Nogueira o espelho é uma metáfora obsidiante. Como as superfícies espelhadas, reflectoras, inquiridoras, rudes e etéreas. O espelho coloca a questão do sujeito: se eu ali não estivesse, não haveria encontro. Coloca também a questão da «boa distância» entre mim, o outro e o mundo. O mundo que é aqui recriado ergue-se à medida em que vamos entrando, ali o sal, ali o espelho, ali a passagem do meu rosto, ali as paredes brancas da capela. Sei que esta não é uma estética do encontro. Aqui não há fusão possível. Que o desabrigo atemoriza. Aqui o espelho é despolido, o aço é despolido. É claro o alinhamento entre o túmulo e o espelho (vidro reflector) que agrega a imagem do observado à do sal. Notória é também a modulação que trabalha com o nº 9. O dualismo que o espelho promete quebra-se logo à entrada da sala. O espaço homogéneo ou «prático» em que os objectos circulam entre um aqui e um algures muda-se em espaço «semântico» ou espaço a ler, em que o vazio se mostra à luz do espelho despolido. O espaço da leitura abre-se nesse ponto de articulação dos signos e dos traços que é o túmulo.
Levantada do chão sobre um espelho e um vidro despolido está assente uma escultura/instalação em aço inox, despolido também. Posta como que a levitar, paira. Parece que paira.
E levanta uma questão: o que é um objecto? Pendurado do tecto por duas linhas imperceptíveis que o suportam, um espelho transparente rectangular interpõe e reflecte a fusão da estática e irradiante escultura com a de cada um dos visitantes em movimento.
A força do espelho vem-lhe da sua suspensão sobre o vazio, impedindo-o de servir a representação do que quer que seja. O gesto de suspensão do espelho empresta-lhe um lado oscilante. O espelho não «sepulta» o olhar que o olha: inquieta-o, abrindo-a às portas da percepção.
Entrar é ver-se ao espelho e ver o túmulo em levitação. No chão, sal branco grosso. Do outro lado da rua, brilho. E luz. Seis desenhos mais seis desenhos que se espelham. Cortantes.
Desvendar
Desvendar, clarificar, limpar, tem sido a tarefa da modernidade. Que o híbrido não ameace a clara evidência das essências. Rome e Statues de Michel Serres fazem o elogio latino ou egípcio de enterrar, ocultar, esconder, colocar na sombra para conservar, opondo-o ao gesto grego de trazer à luz. O voto de Serres cumpre-o a arte ao inventar uma teoria do conhecimento obscura, confusa, negra, não evidente, uma teoria do conhecimento adélico(6).
A estética cristã herdou um esquema de origem pitagórica e musical: a lei dos números e das proporções rege o universo dos sons e das pedras. A simetria e a euritmia são as pedras de toque da construção desta estética, acrescida ainda de um outro elemento: a luz. Segundo o Tratado sobre o Belo (Ennéades, I, 6, 1) de Plotino, asimetria, é apenas o efeito duma beleza composta, um signo que remete para a eminente simplicidade duma luz inteligível que, acima do mundo, é o Um transcendente. É a luz que vem do alto que gera um espaço óptico diferente do espaço da perspectiva que estava já presente no espaço greco-romano. A luz, embora continuando a ser ela própria, mistura-se ao corpo: «a luz deve ser considerada como um ser absolutamente incorporal, embora seja o acto de um corpo» como a alma dá vida ao corpo.
O universo medieval manifesta-se como um mundo transfigurado em que Deus é luz e que é o reino do símbolo em sentido forte. No quadro duma teologia da Luz incriada e criadora, o Belo supra-sensível aparece como a irradiação resplendente sobre todos os seres. Claritas é o termo em que Jean Scot Eriugena (século IX) traduz as expressões gregas com as quais o Pseudo-Areopagita designava o esplendor que emana do «pai das luzes».Clarere, clarus, clarificare são termos com que o abade S. Suger, fundador do novo Saint-Denis e da arte gótica joga para designar este sentido novo. Suger, o «chantre» desta iconografia religiosa, apresenta a função atribuída às igrejas que era a de ensinar nestes termos: «a obra de arte continuava o ensino interrompido. Através das imagens alimentava o imaginário»(7) .
O espaço arquitectónico implica um sistema de iluminação. Importa saber que S. Bernardo dos cistercienses é contra toda a forma de artificiosidade que adultere as funções estritamente religiosas da igreja. As suas reacções contra o simbolismo da escultura românica e o sistema de iluminação que adoptam as suas igrejas constitui uma antítese paralela do sistema gótico baseado no simbolismo da luz. A iluminação da igreja cisterciense é a resposta directa contra o novo sistema de iluminação que então se iniciava. Para alcançar Deus não precisamos sistema mas a meditatio. Branca e de intensidade variável, a luz dos edifícios cistercienses não é colorida, os vitrais são incolores. A luz não se impõe ao visitante, coada apenas por raios luminosos. A luz de S. Bernardo não é «espectacular». As catedrais de Reims e Amiens, de Leon ou a Sainte Chapelle de Paris tornam claro essa ficção construtiva que faz do interior gótico um espaço figurado(8).
O verdadeiro ícone é livre de qualquer ligação associativa, ressonância psicológica. Não é esse o gesto de Malevich no seu Carré noir? «Se o sol é a condição da revelação do mundo da representação, quintessência do princípio que nele nos en-canta, o seu obscurecimento radical será então a condição da imaginatio desse outro mundo, de que o nosso estar-lá diurno é apenas um reflexo, uma projecção»(9).
Carlos Nogueira começa por tapar a luz (o Sol), a luz que cria é uma ficção, uma sequência para o teatro do corpo. Anular a luz que ilumina a talha de ouro. Esta instalação oculta a iluminação natural: a igreja fica completamente às escuras, a única luz de dentro é a que iluminava o sol outra a que iluminava o altar; todas as luzes com a exterior ficam fechadas; um intenso e único foco de luz, ilumina verticalmente e a partir do tecto da capela, o interior de uma escultura/instalação. Luzes mancham o altar numa penumbra dourada, outras, uma zona com sal que permite ao espelhar ser reflector. Como chão da escultura, um espelho, irradiante de luz. Eis uma obra de transducção. Sobre este túmulo, deste lugar que deixou de vos inquietar, farei outro lugar que vos inquiete, vos surpreenda. A demasiada luz com que entrais neste lugar e vedes a talha, o altar, as portas, impede-vos já de pensar o que vos liga ao vivo e que ultrapassa a rotina. Trabalho sobre as superfícies. «A superfície desconstrói qualquer pretensa naturalidade do espaço, liberta-o radicalmente do risco das ficções perspectivistas» (Cacciari, p. 226).
Não se põe em palavra o verbo essencial. O místico esgota-se a dizer esta impossibilidade. A dizer, segundo a expressão de Lévinas, o Dizer que está para além de todo o dizer (Agamben, 1991). Resta-lhe escrever ou proferir. Da incomensurabilidade da criatura e de Deus nasce a necessidade da linguagem. A mais obscura das noites convém à emergência desta linguagem. A mística como dicção da impossibilidade do dizer; como espaço original da linguagem. Destituir os signos convencionais para que se possa instaurar, neste vazio de significação e de ciência, o sítio em que a criatura e o seu deus entrem em ressonância – em que uma para o outro é responso – vasto «espelho das almas simples», reflectindo a nua simplicidade de Deus e de quem entra no seu olhar. Mas este espelho tem um sentido duplo: enquanto mediação entre Deus e a criatura, é um receptáculo de Deus que não se pode olhar: «lugar de esplendor que a nossa vista não pode sustentar» (Minazzoli), deserto de imagens e de palavras. Mas há uma segunda face do espelho feita de errância e de multiplicidade: uma cena plural da linguagem, dicção de Deus: «Queres aprender a gramática? Aprende a declinar Deus no plural» (Pedro Damião).
Coda
Há na capela que serve de dispositivo espacial a esta performance um túmulo. É sobre este túmulo que se operam as mais notáveis alterações: peças em levitação onde a luz obriga a questionar os problemas de cá e de lá. O túmulo é um espaço articulado segundo o dentro e o fora. No Evangelho de João (cap. 20) Maria não entra no sepulcro, fica no limite indicado pela «pedra levantada» (Jo 20, 11). É nesse bordo que o «aqui» e o «algures» se ligam, como pontos de encontro de duas racionalidades. Maria vê dois anjos no sepulcro: são os objectos visíveis que delimitam um espaço directamente referido ao «corpo de Jesus». Assinalam o corpo ausente que anima a ida ao túmulo. Os anjos falam mas para interrogar Maria sobre o seu desejo e os efeitos sensíveis que anima esta procura: «Porque choras?» O visitante de longe e brilha desloca-se entre um «aqui» e um «ali» que não coincide com o espaço da capela e o espaço do Centro mas que de-forma o visível reorganizando-o. A Obra de Carlos Nogueira coloca os problemas do próprio lugar: põe os espectadores em ligação com a terra, o céu ou consigo próprio. A divisão ruinosa entre o visível e o invisível, o convencional e o inovador. Levantado do chão; o estrado de sal; som do mar em tempo real.
O Aberto é a morada em que vive o poeta. Segundo o voto de E. Bloch, os filósofos devem inventar uma «metafísica do pressentimento e da utopia»(10). (EU, 189) que não existe ainda. O único remédio contra o niilismo é reaprender a sonhar com os olhos abertos. O espaço humanista é o da luz diáfana. A luz, na arquitectura e pintura do Renascimento é um instrumento de comensuração e ordenação da realidade, um meio que permite criar um espaço plástico que idealmente supera a realidade(11).
Não há, na estética de Carlos Nogueira, algo de amniótico, de regressivo, mas antes uma estética do desassossego, da luz, da banalidade. Qual é o gesto essencial desta performance? Deslocar o lugar, figurar o espaço figurado é fulgorizar. Rareficar a quantidade do visível, de modo a apresentar a singularidade dos objectos fulgorizados: aqui não há objectos de arte como nos museus que confortam o olhar. Aqui o espelho confronta-nos com o desconforto das imagens e o esplendor do falso. O visível dá-se sempre como o imprevisto.
Que linguagem sustenta esta Obra? Uma linguagem totalizante seria aqui inútil. A estética do fragmento é autotélica, mas não totalizante. Talvez convenha mais evocar a linguagem associativa e auto-irónica. Carlos Nogueira está no pólo oposto àquilo a que se chamou a cultura da espontaneidade (Daniel Belgrad): «spontaneity is akin to dialogues and democratic interactions», quando nenhum padrão é dado antes e para além do convencional, sem deixar a materialidade do «real». A espontaneidade não pode ser definida apenas como uma resistência ao controlo social no contexto de uma cultura capitalista.
Podemos imaginar uma sacralidade sem santidade, à maneira de Heidegger, o tremendum fascinosum que está na raiz de qualquer experiência religiosa. Podemos imaginar uma «sacralidade sem crença»(12). O sagrado confunde-se aqui como algures com a inquietante estranheza da manifestação do ser. O Dasein pressupõe um ateísmo existencial. Quando porém o «mundo» cede o lugar à «terra» o Dasein reencontra uma certa familiaridade com o sagrado.
O gesto de Carlos Nogueira traz com ele a ruptura e a continuidade. A impulsão de que parte este gesto permite-nos sair das imagens de quatro tostões, aquilo a que Thom chama «os atractores de baixo nível». Seguir pelos caminhos mais frequentados é a facilidade da gravitação contra a aspiração, o ar, a verticalidade. A criação é uma luta contra estes atractores de baixo nível. Mas no mesmo gesto de ruptura Carlos Nogueira traça passagens entre mundos naturalmente separados: um Centro Cultural e uma capela. Esta oposição entre os dois universos do Centro «moderno» e «passado» da capela vai modalizar a atenção do sujeito de modo diferente. A capela apresenta-se ao visitante como um espaço «extraordinário», mobilizador. O «charme» do objecto guiará as acções e os estados de alma do sujeito que se torna assim mais atento ao objecto e mais apto para uma transformação patémica que nasce da sua sensibilização ao objecto. O visitante, após a leitura cognitiva do objecto que facilmente reconhece, é literalmente «aspirado» pela singularidade dos objectos que «habitam» agora este espaço. A singularidade do gesto de Carlos Nogueira consiste em concentrar num ponto (local) os indícios do global. É de facto no local que se faz a intervenção da subjectividade e das sensações. Entre os signos icónicos que são o espelho, o sal, o túmulo, o altar, o vidro instalam-se os elementos sensibilizantes que são a luz, a sombra, os degraus, as falhas. São as rupturas operadas ao nível global (da capela e do Centro) que provocam a emergência de singularidades, de lugares catastróficos, de pontos sensíveis. Os elementos sensibilizantes (sensores) são essenciais para compreender a dimensão metafórica da estética: os materiais heteróclitos são transformados em «signos vivos» mas são-no igualmente para compreender a «passivação» do sujeito e a «activação» do objecto.
Há a força das coisas. Cada coisa na sua natureza própria, deve poder conservar o seu ser particular, salvo a ser privada do seu próprio ser. Há coisas, dizia Aristóteles, refractárias a qualquer comércio, a qualquer equivalência: «o saber e o dinheiro não têm qualquer comum medida»(13). Uma singularidade não se propaga em termos de comunicação ou de comércio que avassala tudo. Toca-nos, como uma paixão, um vitral, ou uma música, Messian, por exemplo. Não há aqui qualquer complacência com o público. Harold Rosenberg chegou ao ponto de duvidar da sua realidade(14). Para ele, aquilo a que se chama público não é nunca uma «single entity of high or low intelligence, but a sum of shifting groups, each with its own mental focus» (Rosenberg 1959, p.60). Entidade amorfa, sem vida intelectual própria que não pode nunca ser a raiz de um produto culturalmente relevante. Os pintores não pintam para o público. «The painter makes himself as he acts; the painting itself is the exclusive transformation; it is ‘a Sign’» (Rosenberg, 1959, p.32).
O saber das mãos encontra-se com a resistência dos objectos ou são estes que se transmudam em figuras e dialogam com a instância de enunciação que lhes abriu o espaço da sua aparição. Na arte não é o valor das coisas que importa realçar, mas o ponto de aparição da forma. Importa é a dança dos objectos na sua forma de fazer comunidade, no seu poder de transducção, de anagogia, no seu fulgor singular. O toque mágico desta Exposição está para mim na forma como Carlos Nogueira «habita» esta capela, seleccionando um lugar vazio por excelência que é o túmulo, acordando-nos para a luz que para nós Carlos Nogueira desce, como se faz com a água das regas, para não apagar o que longe brilha. «O homem habita, na medida em que é homem, na proximidade do deus» (Heraclito). Ao espelho? Diante do sal que nos olhos luz mas também arde?
(1) Água Viva, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 6ª edição, 1983, p. 36.
(2) Ver Stéphane Mosès, «Le dernier Journal de Rosenzweig» in O. Mongin, J. Rolland e A. Derczanski, (ed.) Franz Rosenzweig, Lagrasse, Verdier, 1982, p. 207-222. Ver também Marie Renoue, Sémiotique et Perception esthétique, Pulim, 2002.
(3) Cf. Ernout-Meillet, Dictionnaire étymologique de la langue Latine, p. 406.
(4) Claude Zilberberg, «Présence de Wölfflin», Nouveaux Actes Sémiotiques, 23-24, 1992.
(5) Umberto Eco, Kant e o Ornitorrinco, Lisboa, Difel, 1999, p. 358.
(6) Michel Serres, Diálogo sobre a Ciência, a Cultura e o Tempo, Lisboa, Instituto Piaget, 1996, p. 199.
(7) In G. Duby, L’Art cistercien, Paris, Flammarion, 1976, p. 24.
(8) Victor Nieto Alcaide, La Luz, Simbolo y Sistema Visual, Madrid, Catedra, 6ª edição, 1997, p. 34.
(9) Massimo Cacciari, Ícones de la loi, Paris, Christian Bourgois, 1990, p. 223.
(10) L’Esprit de l’utopie, Paris, Gallimard, 1977.
(11) Victor Nieto Alcaide, op. cit., p. 87.
(12)Jean Greish, Philosophie & Théologie. Le Buisson Ardent et les Lumières, t. I, Paris, Cerf, 2002, p. 24. (13) Aristote, Éthique à Eudème, VII, 10, 1243 (trad. Décarie). (14)Harold Rosenberg, Tradition of the New, Freeport NY, Books for Libraries Press, 1959; Art and Other Serious Matters, Chicago, The University of Chicago Press, 1985. Clement Greenberg, Art and Culture: Critical Essays, Boston, Beacon Press, 1986; Homemade Esthetics: Observations on Art and Taste, New York, Oxford University Press, 1999. Eduardo Neiva, Comunicação na Era Pós-Moderna, Petrópolis, Vozes, 1996; Mythologies of Vision: Image, Culture, and Visuality, Berna, Peter Lang, 1999. Raymond Court, «Style esthétique et lieu théologique», Recherches de Science Religieuse, 84/5, 1997, p. 537-556.
Lisboa, 2002