Carlos Nogueira uma sensibilidade da/na mudança
por JOSÉ LUÍS PORFÍRIO
«não colecciono nada. junto tudo!»
C. Nogueira
in projecto de conjunto de mesa e pintura a condizer
A maneira mais habitual de conhecer um artista ou operador estético é ir ver uma sua exposição, instalação ou performance, isto é, da parte do crítico, de quem estuda ou de quem escreve, a posição do público. O conhecimento primeiro que tenho de Carlos Nogueira aconteceu-me ao contrário desta ordem; era ele quem estava no público, um público cada vez menos anónimo.
A relação pessoal, directa ou mesmo anónima, é fundamental para a poética de Carlos Nogueira, daí que este texto tenha, obrigatoriamente, que conter elementos do meu testemunho sobre um visitante do Museu das Janelas Verdes, onde trabalho, de um assistente de acções que levei a cabo, de um cúmplice em intervenções colectivas empreendidas pelo Museu.
Uma série de conversas com o público – «Da Consciência da Arte à Arte da Consciência» em 1976 – seguidas de um seminário para as pessoas mais interessadas – «Ver» em 1976/77 – marcam um encontro pessoal com este artista, então público interessado e empenhado em interessar os outros, em comunicar, participar, ligar! Em 1978, na comemoração do primeiro Dia Internacional dos Museus, na rua, no jardim e salas fora até ao tríptico de Jerónimo Bosch, uma intervenção ritual de homenagem ao pintor, com máscaras e confetis, era um momento bem intenso de um intenso dia de festa.
Acção, intervenção, participação! Normalmente gestos que ou se registam ou se lembram! Tenho, por isso, consciência de que este texto é um trabalho sobre a memória e o vestígio, mais do que o estudo de uma obra plástica em crescimento e que está ainda demasiado oculta. Falo sobretudo daquilo que vi, do que assisti e (ou) participei e não de acontecimentos que apenas conheço de registo. Este texto terá assim uma primeira parte entre o descritivo e testemunhal sobre a obra, e outra em que a partir dessa vivência e dessa memória procurarei elaborar mais alguns dados para o entendimento, melhor seria dizer sentimento, do trabalho desse artista.
TESTEMUNHO
Falo agora não só do que vi mas também do que vivi, de cinco trabalhos, ou acções de Carlos Nogueira, dois como participação em exposições colectivas, três apresentados individualmente.
1. 99 pombas de brincar
para outros tantos usadores
Projecto de 1974 realizado quatro anos depois no âmbito de uma colectiva da Sociedade Nacional de Belas-Artes. O título diz muito, quer das intenções quer do que aconteceu: no chão as noventa e nove pombas repintadas, brancas nas asas, no corpo, nas rodas, alguma cor no bordo das asas, as hastes eram diversos azuis. As pombas eram para brincar e foram brincadas enquanto as houve; depois foram partindo, levadas umas por amigos, com assinatura e dedicatória, outras, as mais, dadas anonimamente a quem as quis para brincar, sonhar, voar com elas.
O objecto desaparecia nessa dádiva. A sua presença na exposição deixava de ser física, na galeria ficava ovazio, entrando o cheio em noventa e nove outros lugares que eram, penso, metáfora para todos os lugares possíveis de uma infância a reinventar.
2. os dias cinzentos/lápis de pintar dias cinzentos
Foi, primeiro, uma exposição no espaço duplo da galeria Diferença com dádiva de objectos, os «lápis de pintar dias cinzentos», com desenhos na parede e no chão vestígios de acções passadas, as pombas desfeitas, plásticos cinzentos, foi, ainda e sobretudo, uma intervenção levada a cabo na noite da abertura, projecção de slides de nuvens (cinzentas) e céu nas paredes, no público que enchia a galeria, nos desenhos, no quase lixoque ia pelo chão. Isto passou-se no último dia do Inverno. Seguiu-se-lhe no Outono – próximo futuro – uma acção postal de envio de lápis de cor «profilaxia contra a cinzentura que o próximo Inverno trouxesse».
À partida uma ideia muito simples: a oferta de um lápis de cor, de muita cor, para pintar a possível e quantas vezes irremediável tristeza do quotidiano. Tal ideia era encarnada num espectáculo que magnificava um pequeno espaço onde se mostravam, melhor, onde estavam restos e vestígios, transformando aquela sala num exercício prático de modificação do real e do quotidiano.
3. conjunto de mesa e de pintura a condizer
e outros fragmentos de um discurso
sobre o comum e o quotidiano,
ou a primeira fruta com as primeiras chuvas
Esta exposição/instalação de pintura e outras coisas é dos trabalhos que conheço a Carlos Nogueira, o mais rigoroso; pelo agenciamento formal de uma situação espacial e cénica que, ao mesmo tempo, encenava uma situação perecível e única contendo também uma exposição de desenhos que eram outras tantas «páginas de um diário sem data». Vale a pena tentar descrever!
Uma sala grande e comprida, no Centro Nacional de Cultura, dividida em dois espaços, quase uma pintura, um díptico, vejamos:
– à esquerda o espaço «noite», um lugar para ver de fora, sem entrar, aí, dramaticamente iluminados, um cavalete com suas pinturas de riscado e uma mesa composta, linho branco a cobri-la, a taça transparente das cerejas, talheres e copos de pé de vidro branco, um postal refeito (paisagem de (man)dar?) com textura marinha (o mar/a mar), perto da mesa, no chão, caído como uma pintura que tivesse fugido do quadro, merecendo iluminação e, por conseguinte, relevo especial, um pano de riscado.
– o lado direito, o espaço «branco», é um lugar de entrar, de (vi)ver, na parede as páginas de diário (eram 99 no projecto) ou outros tantos desenhos, colagens, registos, gratagens, notas, ao centro, a mesa posta com pão, água, as cerejas, as incríveis cerejas em pleno Inverno amorosamente preservadas meses a fio para estarem frescas ali, por umas breves horas, e ainda: doces, compotas, licores, rebuçados, chupas, tudo a partir da utilização e da citação desse fruto aparentemente impossível de comer fresco no tempo das primeiras chuvas.
O espaço desta exposição, ao contrário de outros, não ficava vazio depois de comidas as cerejas, o pão, as compotas, de bebidos os licores, ficavam, para além do vestígio de uma festa, uma forte presença naquele lugar, a poesia ou, muito provavelmente, a pintura feita coisa, ali entre nós que o visitávamos!
4. do céu/o sal
O azul do céu, envolvente. Branco do sal um ambiente numa exposição evocativa da História Trágico-Marítima(SNBA), novamente a dádiva com a oferta de sacos de sal aos visitantes. Um ambiente construído usando sobretudo um amontoado de plásticos e varas azuis do transparente ao branco. Um espaço feito de propósito para que o olhar nele se não encontrasse, para que o olhar ficasse perdido e transviado vagueando na memória do sal que morde o corpo.
5. paisagens de (man)dar
Intervenção postal e sobre o postal. Das manifestações de Carlos Nogueira foi esta que mais se aproximou da exposição tradicional. Constou de uma montagem em banda contínua de setenta e cinco postais refeitos, por um processo de colagem em tiras sucessivas com paisagens/texturas de mar, terra e céu. Antes porém tinha enviado a uns quantos amigos um postal/paisagem pedindo-lhes resposta com outra paisagem: desenho, carta, poema, palavra… Tais respostas constituíam a introdução à exposição. Dar, dar e receber, a troca como prova provada da comunicação que é também, é sobretudo, o acto (artístico) de expor, de se expor, de se dar…
Escrevi então: «o postal desbanaliza-se, torna-se uma estrutura vibrante e sensível, é para mandar mas é também para dar a ver a sempre possível beleza que está nas coisas, em todas as coisas. Carlos Nogueira… propõe um pequeno jogo de transformação do mundo através do bilhete postal que serve para comunicar, para dar, para trocar com os amigos, objecto do quotidiano que os nossos olhos, mais tesoura e cola, podem transformar, não para o diminuir, ridicularizar ou subverter, mas para o exaltar como matéria sensível…»!
O suporte do recado passava a ser, magnificado, o próprio recado, nesse miniprojecto de embelezamento do mundo!
A OBRA
O trabalho de Carlos Nogueira é mais vasto do que este testemunho de um contacto directo com uns quantos momentos privilegiados do seu percurso, para além deles ficam acções e vária obra plástica como:
– no domínio das acções a intervenção de rua que consistiu em espalhar por vários pontos de um percurso urbano (Lisboa) e suburbano (Oeiras) ramos de flores naturais com uma mensagem que deu o nome à acção: «gosto muito de ti»! No prolongamento desta, fica uma outra acção concebida para Vila Nova de Cerveira reeditada em S. Paulo no Brasil (Exposição «25 artistas portugueses de hoje»); chamava-se a camões e a ti e também tinha depostos pelo chão da Vila 400 ramos de flores de papel, uma por cada ano passado sobre a morte do Poeta, enquanto o público recebia um antipanfleto avisando-o que «todo o mundo é composto de mudança»! Texto que sob a forma de graffiti era escrito num muro «parede morta».
– a obra plástica tem estado sempre intimamente ligada às intervenções no espaço e nela teríamos de incluir, para além das páginas de um diário sem data que estão no caminho intermédio da escrita, do desenho, da colagem, os projectos para as suas acções que são, de outro modo, outras tantas páginas de diário desenhado e escrito, ou, mais recentemente vindas a público, a evolução dos seus desenhos/pintura com projectos de riscado para riquíssimas superfícies que oscilam entre a escama, a pele e a terra, desenhos ou melhor, epidermes sensíveis engendradas para serem mais que vistas; palpadas pelo olhar.
REFLEXOS…
Passeei-me por dentro da memória, consultei documentos, fotografias, diapositivos, revi projectos e, um por um, fui invocando alguns momentos da relação de Carlos Nogueira com aqueles aos quais se dirige. Passo agora, sem distinguir tais momentos, mas sentindo-os no seu conjunto, a debruçar-me sobre eles para tentar, em reflexos pessoais (não! Sobretudo não são reflexões!), pensar/sentir, isto é, aproximar-me e aproximar do seu trabalho:
1. Ir e Voltar
Dar sim, mas receber, sentir o retorno das coisas produzidas, a aceitação delas, o testemunho ou outras manifestações, palavras, poemas, recados, numa espécie de feed-back poético que o confirme no seu estar e no seu criar e, no fundo, lhe dê as forças indispensáveis ao SER!
2. Convivialidade
Poderia, mais simplesmente, chamar-lhe simpatia; das coisas, dos objectos, dos quadros ou das evocações criadas, numa situação que nunca é, nem nunca se quer, agressiva, antes e no sentido mais autêntico que esta palavra pode ter: amável!
3. Consciência?
Ou sensibilidade, pergunto? Como se o sentir não chegasse também à consciência e a clara razão não tivesse, a todo o tempo, de se haver com ele. Ainda quando evoca o sal, a cinza, a ruína ou um deserto possível, a obra de Carlos Nogueira está consciente de uma urgência que se poderia traduzir num conhecido verso de um conhecido poeta:
............«é urgente o amor»!
4. Vazio
O vazio é aqui um pleno, nunca é o nada, o zero, a negação do ser. É a marca da dádiva, sinal de que a comunicação se cumpriu ou, pelo menos, se arriscou.
5. Lixo
É um luxo na capacidade que tem de se transformar, no convite ao olhar, à acção, à memória, resto de beleza ou de plenitude ou caminho para ela!
6. Fazer
É mudar as coisas banais em coisas novas, melhor, é transformar o mundo lenta e seguramente, mudar o olhar sobre as coisas, dar uma vida nova à palavra...
7. Maravilha
À capacidade de admiração e de espanto jogando esses sentimentos contra a necessidade intelectual das rupturas, melhor, rompendo com elas para buscar a fluidez da comunicação. Assim o quotidiano poderá ser como um
8. Rio Escondido
Um fluir de pequenas e grandes razões de espanto e de encantamento. A obra de Carlos Nogueira é a permanente busca desse espanto, é a insistente navegação nesse rio e o insistente convite a que partilhemos com ele um pouco da sua viagem.
FRONTEIRA
Este artista é um homem da fronteira; não por vontade mas por destino próprio, já que a sua obra se vem desenvolvendo na grande transformação que a arte ocidental tem sofrido dos anos setenta a esta parte. O seu percurso e as suas acções são prova de uma importante mudança no sentir e da passagem de uma
Estética do Corte a uma
Estética do Laço!
Unir, juntar, juntar tudo, «não colecciono nada. junto tudo!» Objectos, memórias, sombras de sentimentos... é impossível enumerar ou listar, não se acabaria nunca!
Estes trabalhos e estas acções são a demonstração activa de
– uma sensibilidade DA mudança
que actua com os materiais e as técnicas que, há bem pouco tempo,
serviam para afirmar o corte, a separação ou a ruptura.
Quanto ao seu modo de operar ele é
– uma sensibilidade NA mudança
é o acto, o gesto, o vestígio que lentamente, coisa a coisa, vai traçando um
percurso que tudo quer unir, transformando cada passo a cada passo que dá.
In Colóquio / Artes,
N.º 65, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, Julho 1985, p. 30-35.