A casa.
por GONÇALO
M. TAVARES Texto propositadamente escrito para a exposição e catálogo de desenhos de construção com casa . e céu de Carlos Nogueira.
No fundo, todo o toque leve na matéria é aquilo a que um entusiasta (ou o bom observador) chamaria delicado ataque aéreo: a velocidade da mão – sustentada por uma competição mínima entre os dedos, a intenção e o silencioso atrito do ar – deixa na matéria um traço, que é fino, quase imperceptível, sem volume, muito menos gordura – traço porém que não é apenas exercício físico sobre a madeira, mas traço que pensa, que reflecte o mundo numa concentração não habitual. (Como alguém que falasse tudo, mas num tom baixo para que todos se calassem.)
Estamos pois num sistema onde o mínimo tem variações infinitas. Um olhar desatento e precipitado dirá: nada acontece na matéria do mundo. O olhar justo, pelo contrário, separado dos acontecimentos festivos e ruidosos, regista o trajecto passo a passo da luz. (Animal que dá intensidade ao ar – a luz – eis que ele avança na madeira passo a passo, pé a pé, dedo a dedo.)
Porque em certos sítios não há coisas, há apenas o elemento que dá visibilidade às coisas. É certo que a luz não é um objecto, mas certas peças do escultor parecem guardá-la como um cofre guarda tesouros, mas cofre generoso, que deixa ver o que protege. Certas peças protegem a luz e mostram-na.
Por vezes, subitamente, uma lâmina. Não se trata de crime, mas certamente estamos perante o aparecimento da força. Repare-se que a lâmina não deixa passar a luz – maldade ou apenas o exercer de uma opinião física? – como julgar o que parece ter movimentos secretos? Há, pois, fronteiras, como se naquele universo mínimo, de microscópio, houvesse tempo e espaço para estabelecer vários lados, uma ou outra desavença, oposições, direitos de uns contra o direito de outro. Não há apenas qualidades serenas – nada se parece com sangue, é um facto, mas talvez existam subtis citações dele.
O facto é este (o mais relevante): quando habituámos os olhos à sala escura começamos a ver que afinal esta não estava deserta, pelo contrário: está repleta de coisas. Também aqui, nestas peças, os nossos olhos precisam de tempo para se habituar à diferença de luz e, acima de tudo, à diferença de dimensão. E depois, sim, tudo fica claro: não faltam acontecimentos, nem vulnerabilidades, nem duelos, nem actos livres: as lâminas estão aí e também os traços – e juntos libertam uma tranquilíssima agressividade – utilizemos então esta fórmula estranha para fechar a porta da casa.
In Carlos Nogueira, desenhos de construção com casa . e céu, Almada, Casa da Cerca - CAC, Maio 2006, p. 60-69.