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Três proposições sobre o trabalho de Carlos Nogueira

por DELFIM SARDO

Vou tentar ser claro:

1. O trabalho de Carlos Nogueira não é escultura, é projecto de arquitectura e de paisagem e desenho edificado.
2. Os projectos de Carlos Nogueira não são minimalistas.
3. A obra de Carlos Nogueira vive num estreito fio entre uma visão neo-platónica e a compulsão da forma.
3. O equilíbrio nesse estreito caminho é a sua árdua tarefa.

Então,

1.
O trabalho de Carlos Nogueira não é escultura, é projecto de arquitectura. A escultura é outra coisa, mesmo nos desenvolvimentos que o século XX propôs para as suas metodologias. Digamos que a escultura percorreu um percurso, nos últimos cem anos, de voluntária perda da relação com a sua tradição, tendo encontrado na troca com outros géneros artísticos o seu carácter pluralista. Queiramos ou não, aquilo a que hoje chamamos escultura é, na maior parte das vezes, alegoria da escultura, da tradição escultórica. Outras vezes é alegoria do cinema, outras do teatro. Muitas vezes, alegoria da arquitectura.
A escultura tem uma tradição que se prende a uma ética do monumento – mais do que a uma estética monumental. Digo ética, na medida em que a escultura nasceu, e deriva, de uma vontade celebratória, de uma necessidade política de lembrar. Memória e monumento são irmãos, frequentemente incestuosos, e da sua união nasceu, muitas vezes, o colosso – para usar um termo kantiano –, a estetização do poder, em oposição ao sublime da natureza.

Vale a pena, hoje, reflectir sobre essa impropriedade da escultura face ao nosso tempo. Se a escultura se ancorou na metáfora política da memória, pelo menos a escultura celebratória pública, é hoje evidente a sua dificuldade em lidar com a legitimidade. Para a mobilização de vontade e de recursos da escultura, para a possibilidade da escultura enquanto oportunidade catalizadora colectiva, é necessária uma legitimidade que já não reconhecemos, pelo menos no ocidente, à capacidade representativa do Estado, nem tão pouco a qualquer gesto demiúrgico do escultor. Poderíamos encontrar diversos momentos fundadores desta incompatibilidade social da escultura na sua vertente monumental, desde o Balzac de Rodin até à bela metáfora de impossibilidade que foi o Monumento à III Internacional de Vladimir Tatlin, obra nunca edificada, porque a história lhe travou sempre o passo, quer por ainda não ser o seu momento, quer porque, a partir de 1927, Tatlin tinha perdido a sua relação com o regime – e o regime já não estava interessado no carácter visionário autóctone que se libertava da excentricidade de Tatlin.
Esses primeiros anos da década de vinte do século passado contam a história desse desajuste de passo da escultura, ou da sua transformação noutra coisa – numa gruta, num casulo, ou numa exposição, tipologias novas que se definem como o avesso da escultura – como um interior, trabalhado como uma narrativa, desde Schwitters a El Lissitzky e Rodchenko, ou, mais tarde, Ed Kienholz – já noutro lugar, o interior de um set cinematográfico.

Não é a partir desta tradição que se desenvolve o trabalho de Carlos Nogueira.
As suas edificações, quer sejam volumes maciços que se erguem no horizonte, quer sejam espaços que podemos percorrer, nem se configuram como monumentos, nem como sets, mas como projectos de edifícios e de habitações cegas. Em muitas das suas obras, a casa é o modelo que propõe a sua metáfora. Noutros casos, é o edifício, ou o muro, seu arquétipo, o que significa que é a tipologia do edificado, do construído, da deposição de materiais, de camadas sucessivas, que localiza o espectador perante uma construção – e não perante uma escultura. Por outras palavras, não é nas tipologias clássicas da escultura (o escavado, o moldado e o acoplado) que Carlos Nogueira faz assentar o seu processo produtivo, mas numa outra metodologia, na qual a tipologia do muro, do que se ergue do chão ou que o delimita, representa o núcleo central.
Vale sempre a pena visitar uma obra de Carlos Nogueira enquanto é construída, porque se torna evidente que a tipologia da parede, do muro, do caminho, da porta, são os seus modelos – mais, serão o seu destino.
Pessoalmente, interessam-me particularmente as peças de Carlos Nogueira nas quais a secura construtiva se torna indiscernível da sua razão, nas quais o pensamento de edificação é indissociável do resultado. É nesses momentos que se estabelece um vínculo entre o desenho e a massa, entre a elegância do pensamento e a sua maturação em obra.
É o caso das obras apresentadas na exposição a noite e branco, apresentada no Pavilhão Branco do Museu da Cidade em 2000, como e sem peso desce e nem se sente, ou como uma imensa coluna de ar, ambas do mesmo ano, nas quais a presença do desenho é límpida nas linhas paralelas que atravessam os muros e que são a paradoxal marca da sua perenidade.
Perenidade é uma palavra que tem vindo a atravessar o discurso de Carlos Nogueira e a instalar-se como um chão. É uma palavra importante porque corre a contra-corrente da efemeridade do seu primeiro trabalho, no qual a performance ocupava um lugar importante, para estabelecer um vínculo com uma natureza produtiva que não pertence ao domínio do acontecimento, mas da permanência. Adiante voltaremos a esta questão, na medida da sua relação com a ideia de sobrevivência (Nachleben). Interessa agora notar a sua compulsão arquitectónica, para a qual é essencial a vontade de permanência na edificação de um desenho, isto é, de um percurso que foi pensado em simultâneo com a sua inscrição, que não corresponde, no entanto, ao seu destino – porque o seu destino é o espaço concreto ou o espaço real, para utilizar uma terminologia já clássica da teoria da escultura.
A memória, que surge em Carlos Nogueira como evocação frágil – e não como celebração gloriosa – não serve, assim, de suporte para o monumento, mas para a arquitectura de uma construção, isto é, para um percurso tornado lugar que nasce de um desenho e se ergue como edifício. Por outras palavras, a peculiar acepção de monumento das peças de Carlos Nogueira incorpora uma consciência crítica da monumentalidade, sob a forma do poético, que simultaneamente lhe confere a fragilidade que as alivia da violência da perenidade que procuram. Como se, no meio da evocação frágil da memória, como um pensiero debole, sobrevivesse uma razão íntima para a edificação da perenidade – ou da sua vocação.
Outra tónica importante do trabalho de Carlos Nogueira é a sua ligação ao chão, de uma forma que estrutura o território de incisão da intervenção e, simultaneamente, lança a questão da estruturação segundo uma ordem (ou ordens) do campo do visível. Esta ordem do visível, que transforma o território em lugar, chama-se paisagem. É, portanto, segundo uma necessidade paisagística que se define o móbil do trabalho de Carlos Nogueira, efectuando um arco que começa no desenho, se converte em projecto, depois em estaleiro e finalmente em reconversão da paisagem num campo afectivo e poético.

2.
Existe um paralelismo quase fácil entre o trabalho de Carlos Nogueira e o minimalismo, ou pelo menos, em relação aos artistas que estabeleceram o campo de intervenção que se situa no prolongamento das preocupações de Donald Judd, Carl Andre, Dan Flavin e Robert Morris – este último durante um breve período, de 1964 a 1968. Esse paralelismo assenta sobre uma comparação primária entre a secura das obras destes artistas e o desenho geométrico do trabalho de Carlos Nogueira. De uma forma mais subtil, poder-se-ia encontrar também uma compulsão teatral em ambos os trabalhos. Esta comparação, no entanto, não poderia ser mais enganadora e geradora de mal-entendido.
Se efectuarmos um rápido sumário das preocupações dos artistas que pugnaram por uma volta da tridimensionalidade como o núcleo central das preocupações artísticas das segundas vanguardas do século (a outra componente seria uma tónica analítica), é claro que as questões da serialidade, da repetição, da ruptura com a manufactura, e da fuga aos processos de significação estabelecem eixos de continuidade aglutinadores das suas preocupações.
Nenhuma destas características é encontrável no trabalho de Carlos Nogueira.
Em primeiro lugar, o problema da serialidade: não existe no seu trabalho, nem nos desenhos, nem nas pinturas, nem na obra tridimensional, qualquer processo serial. A serialidade, tal como foi definida por John Coplans, consiste na possibilidade de encontrar um corpus de sequência variável, estranho a qualquer estrutura narrativa, tipificado pela possibilidade de construir uma série em última instância aleatória, sempre por definição aberta.
Nenhuma destas características pode servir para pensar a obra de Carlos Nogueira, mesmo quando utiliza a repetição, ou a série, como dispositivos. Para lá da possibilidade combinatória, a série pode servir a Carlos Nogueira como uma estrutura que define uma sequência. Esta situação é particularmente notória em entre duas águas, de 1992, uma instalação apresentada no Museu Nacional de Évora que incluía uma série de desenhos, ou em uma floresta. como um rio, do ano seguinte, que consistia num conjunto de 1000 prumos alinhados na encosta da Av. Calouste Gulbenkian em Lisboa, ou mesmo nos desenhos incluídos na exposição a noite e branco, apresentada no Museu da Cidade em 2000. No caso de uma floresta. como um rio, peça que poderia ser facilmente tomada como serial, a questão da repetição dos prumos é remetida para uma necessidade de definir um campo que não admite a sua multiplicação, na medida em que o seu sentido não é conferido pelo carácter repetido dos elementos «peça a peça» – como se cada um remetesse para o posterior, legitimando-o – mas de uma forma global como uma unidade indissociável. O todo é o seu sentido e não a vertigem compulsiva da repetição, que faz, como no poema de Gertrude Stein, que cada rosa seja outra. Trata-se de um processo repetitivo que declina uma totalidade, e nesse sentido uma unidade.
Assim, o carácter repetitivo não deriva de nenhuma fuga em relação à manufactura, já que a manufactura é inerente ao trabalho de Carlos Nogueira. Não só é inerente como, frequentemente, instauradora do seu próprio sentido. A marca da mão (que pode não ser a mão do artista, mas a mão de quem faz, de quem instala, de quem assenta placa sobre placa, espelho sobre espelho), é parte indissociável da sua poética e corpo da sua memória. Mesmo quando os elementos que utiliza são industriais (o aço corten de a parar a luz, as placas de revestimento do chão, etc.), eles são apenas matéria-prima – para um trabalho de assentamento, de construção que é precioso no seu processo, isto é, que valoriza, quase reifica a natureza do trabalho manual, fazendo com que o desenho – matriz última da manualidade – surja, frágil, na construção.
A este respeito, vale a pena determo-nos na obra a parar a luz, provavelmente aquela que pode invocar os processos dos artistas minimais, sobretudo de Donald Judd.
A peça é constituída por três paralelepípedos de aço corten, ocos, cobertos por panos de vidro que reflectem o céu. Aos módulos de aço Carlos Nogueira chama colunas. Esta denominação não é aleatória ou indiferente. Bem pelo contrário, convoca para si a memória da arquitectura e da monumentalidade, mas faz substituir qualquer elemento que estas colunas pudessem suportar por um reflexo do céu, isto é, por uma absoluta imaterialidade que só existe porque é gerada pelo dispositivo cénico (no verdadeiro e profundo sentido do termo) que define.
A obra devolve o céu ao chão, mas de uma forma que incorpora uma estratégia de contradição, dado que os paralelepípedos de aço não tocam o solo, gravitam, fazendo projectar no chão a sua sombra. Este desenho da luz – esta paragem da luz – nega o peso dos módulos, limpa do horizonte a sua irredutível materialidade para receber a alegoria de imaterialidade que a luz tem vindo a ser. Trata-se, assim, de um trabalho quase religioso, muito próximo da oração pela sua natureza vocativa, pelo elo que define entre o que está em cima e o que está em baixo.
Ora, esta metodologia de trabalho não configura qualquer preocupação minimal – porque vive para a produção de sentido, para um sentido que, mais a mais, transcende a materialidade da obra, localizado na ordem construtiva e na orientação.
Em termos geométricos, a peça deriva de um conjunto de conexões efectuadas a partir de múltiplos de três – o espaço do Jardim das Esculturas do Centro Cultural de Belém foi dividido em três áreas, servindo essa divisão para efectuar a orientação da obra; a peça foi orientada segundo um eixo N/NW, desviado em relação ao eixo N/S a partir da implantação da peça tendo em atenção o alinhamento dos cantos opostos no eixo E/W; as dimensões de cada um dos módulos derivam de múltiplos de três [(300X300X120) distantes 30 cm entre si, a área de cada vidro é de 9m2, etc].
Esta metodologia dirige-se à produção de uma geometria que será intuída pelo espectador porque lhe fornece uma ordem e, nesse sentido, define uma forma. Estamos muito afastados das preocupações dos artistas ditos minimais e muito mais próximos de uma teoria da ordem, apolínea.

3.
Assim, o trabalho de Carlos Nogueira situa-se entre dois pontos contraditórios, deles retirando a sua energia: por um lado, assenta sobre uma ideia de ordem que deriva de uma acepção de harmonia enraizada numa tradição pitagórico-platónica, pertencente ao domínio do imutável, do perene – quase num sentido teológico e certamente num sentido teleológico. Por outro lado, a expressão dessa ordem é sempre do domínio da forma, mas da forma entendida como imanência, como entidade presente face ao espectador, sobre a qual se abate o desígnio da ordem e na qual ela se manifesta – ficando sempre a suspeita sobre se essa ordem existirá fora da materialidade do assentamento construtivo, fora da escolha criteriosa dos materiais, fora do detalhe.
É aqui que a ideia de Nachleben encontra a sua concretização, na medida em que cada projecto testa a sobrevivência da forma e tematiza-a como o seu campo, legitimando o seu processo. É também aqui que se manifesta a memória, a sua sobrevivência, a sua continuidade no fluxo não evolutivo do tempo. A sobrevivência é uma anamnese de sintomas, como diz George Didi-Huberman.
«Gott stet am kleines Detail» era o aforismo de Aby Warburg, depois tão popularizado por Phillip Johnson, que o colocou, sob outra forma, na boca de Mies van der Rohe. Trata-se de uma afirmação mais densa e mais intensa do que a sua popularização deixa antever, porque se refere, não à importância do detalhe (ça va de soi), mas à morada da transcendência, só localizável no pormenor, no fragmento. Ora o detalhe é o lugar da diferença subtil, da verificação de verdade.
É neste complexo jogo entre o reconhecimento da verdade a partir da diferença e a sua prova irrefutável da transcendência de uma ordem que, em si, não é autónoma – porque necessita da imanência para viver – que Carlos Nogueira faz construir a forma.
A sua forma é, então, a manipulação de um lugar, a partir das suas coordenadas, as da convenção e as outras, sensitivas, até encontrar essa manifestação da grande ordem na pequena diferença.
É esta a sua dimensão de projecto, é esta a sua arquitectura. É aqui que fica a sua frágil perenidade.

Lisboa, 2004.

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