Onde quer que o limite se encontra obras de Carlos Nogueira
por CAOIMHÍN MAC GIOLLA LÉITH
O mundo é tudo aquilo que for o caso
Desde a mosca que expira na cave
À alada Vitória de Samotrácia.
Culpem e louvem o Deus desajeitado
Que esconde, envergonhado, o seu rosto idoso;
Cuja luz se oculta por trás do seu véu nebuloso.
O mundo, contudo, é também tanta coisa mais –
Tudo o que imaginativamente for o caso.
Tácito cria que os marinheiros podiam ouvir
O sol mergulhar no mar a ocidente;
E quem questionaria esse titânico rugir,
O vapor que sobe onde quer que o limite se encontre?
Derek Mahon, Select Poems, Londres, Viking/Gallery/Oxford University Press, Londres, 1991, p. 135.
O poema Tractatus, de Derek Mahon, é uma réplica à tentativa irremediavelmente ambiciosa de abranger o mundo apenas à força de lógica, enunciada pelo jovem Wittgenstein na proposição que abre o seu Tractatus Logico-Philosophicus. A isso, Mahon reage reafirmando os direitos da imaginação. O seu poema reconhece a autoridade da razão, mas exige que a imaginação seja também respeitada. Se realmente certas coisas só são conhecidas dos filósofos, o poema sugere que também certas coisas poderão ser mais bem entendidas pelos poetas, ou pelos artistas criativos em geral.
O título de uma das duas peças especialmente criadas por Carlos Nogueira para a praça do complexo de edifícios do Economist é até ao fim das terras todas. Essas palavras são escritas à mão livre com silicone sobre uma série de placas de vidro verticais que se encostam despreocupadamente a uma parede de tijolo do outro lado da praça, em frente à entrada principal da torre do Economist. Esta frase poética fugidia, garatujada descuidadamente e precariamente suspensa em pleno ar, é tornada opaca pela sobreposição das superfícies de vidro. Como o poema de Mahon, o sugestivo grafito de Nogueira surge como um estímulo para a imaginação, um convite ao sonho num ambiente que poderia não parecer, à primeira vista, inteiramente favorável a esse tipo de reflexão.
Os edifícios do Economist, concluídos em 1964, representam a face humana do modernismo ao estilo de Mies van der Rohe. A encomenda original estipulava claramente que o projecto não deveria incluir «elementos antiquados» e que o edifício deveria «exprimir a era contemporânea». Não obstante, exigiu aos seus arquitectos, Alison e Peter Smithson, a manutenção de um delicado equilíbrio entre as variadas exigências da tradição, na forma da envolvente arquitectónica do local da construção, e os ditames da inovação. (Os segundos eram, claro, absolutamente e muito mais incontornáveis na altura do que é hoje possível imaginar.) No fim da construção do complexo, os Smithson descreveram-no como «um edifício didáctico, um edifício deliberadamente seco… A nossa lição não se encontra apenas no que fizemos, mas também no que deixámos por fazer». Contudo, há uma enorme diferença entre didáctico e ditatorial. Aqui temos um edifício feito para um jornal dedicado à «procura da razão», como proclama o título da história do Economist, escrita por Ruth Dudley Edwards. Contudo, os seus arredores não são nem adversos nem imunes às blandícias da poesia. E este é um facto que Carlos Nogueira parece de bom grado explorar.
Do mar, das pedras, da cidade é o título da exposição de arquitectura portuguesa contemporânea para cujo complemento as intervenções escultóricas de Nogueira foram encomendadas. Tanto a selecção e organização deste acontecimento como os textos que o acompanham reflectem um desejo consciente, por parte do comissário, de realçar as «tensões [produtivas] entre integridade e pluralidade, e entre o permanente e o efémero» na actual prática arquitectónica portuguesa. Na arte de Nogueira, paradoxos como estes são repetidamente adoptados e saboreados. Uma exposição sua, apresentada em 1993, intitulava-se permanência da água, e esse era também o título de um catálogo substancial onde uma trilogia de obras dos inícios da década de noventa se viu analisada no ano seguinte. Uma tensão sugestiva entre fluidez e imutabilidade encontra-se no cerne da sua obra.
A peça que acompanha até ao fim das terras todas consiste em dois muros em forma de L, feitos em mosaicos brancos empilhados e entremeados de longas varas metálicas de secção quadrada, colocadas em recesso. Os mosaicos, de produção industrial, são feitos de cimento misturado com pequenas partículas de pedra. Assim, complementam perfeitamente o pavimento original da praça. Apesar da sua indubitável precisão e qualidade de construção, esta estrutura não possui a solidez e aspiração à permanência da pedra e cal, da arquitectura com fundações profundas. (E, como tal, reflecte o paradoxo inerente à ideia de uma exposição de arquitecturaitinerante.) Sem função e um pouco incongruentes, estes muros parecem à distância flutuar ligeiramente acima do solo, como se tivessem aqui encontrado um local de repouso apenas temporário.
Esta peça dá testemunho de um amor pela rectidão, uma poética de ângulos rectos. Nas palavras de Gaston Bachelard: «a graça de uma curva convida-nos a ficar. Não podemos abandoná-la sem desejar voltar.»(1) Por outro lado, uma curva angular parece-nos mais ameaçadora. Pergunta Bachelard: o que nos leva a dizer «que um ângulo é frio e uma curva é quente? Que a curva nos acolhe e que o ângulo muito pronunciado nos rejeita? Que o ângulo é masculino e a curva feminina?» Vemo-nos aqui aprisionados – metafórica e literalmente postos a um canto – pela convenção que atribui graça às curvas e associa os ângulos à inflexibilidade. O diálogo estabelecido pelas duas intervenções de Nogueira na praça contrapõe uma retórica de contenção e direccionalidade constrangida a uma poética da cintilação e fragilidade. Em última análise, o seu lirismo angular aponta para um conjunto de associações mais flexíveis que as consideradas por Bachelard.
Germano Celant escreveu certa vez, numa declaração de intenções para o movimento Arte Povera, que
O que interessa ao artista é a descoberta, a exposição, a insurreição do valor mágico e maravilhoso dos elementos naturais. Como um organismo simples, o artista mistura-se com o que o rodeia, camufla-se, expande o seu limiar das coisas.(2)
Os acrescentos temporários de Carlos Nogueira à praça do Economist são simplesmente as mais recentes de uma série de tentativas no sentido de «expandir o seu limiar das coisas». Para uma floresta. como um rio, concretizado em 1993, plantou uma orla eriçada e iridescente de mil mastros de bandeira brancos ao longo de uma elevação de terreno que flanqueava uma auto-estrada muito movimentada em Lisboa. A esta surpreendente intervenção numa paisagem preexistente seguiu-se a criação de uma paisagem alternativa, inteiramente inventada: chão de cal (1994) consistia numa alva extensão de cal que cobria todo o chão de uma imensa sala grosseiramente rebocada a cimento no interior do Museu Nacional de História Natural, em Lisboa. Esta paisagem lunar luminosa era rodeada por um estrado de ripas de madeira negro-avermelhada. Frágil, ressequido e gretado, chão de cal era, em termos literais, um ambiente limitado. Imaginativamente, no entanto, o seu poder de sugestão não tinha limites. Com estes trabalhos mais recentes, a arte elementar mas sofisticada de Nogueira continua a expandir os seus horizontes, convidando-nos a considerar o que poderá existir «para além do derradeiro limite da terra», onde quer que esse limite se encontre.
(1) Gaston Bachelard, The Poetics of Space, trad. inglesa de Maria Jolas (Nova Iorque, Orion Press, 1964), p. 146.
(2) Germano Celant, «Arte Povera», in Charles Harrison & Paul Wood (org.), Art in Theory, 1900-1990 (Londres, Blackwell, 1992), p. 887.
Abril de 1998
Tradução de José Gabriel Flores
In Carlos Nogueira, beyond the very edge of the earth Lisboa, Maria Janeiro (editora), Maio 1998, p. 7-14.