carlosnogueira.webeffect.pt
  • Biografia
    • Introdução
    • Exposições Individuais
    • Exposições Coletivas
    • Outros Projetos
  • Trabalhos
  • Textos
    • Textos de Carlos Nogueira
    • Textos Sobre Carlos Nogueira
  • Bibliografia
    • Monografias e Catálogos Coletivos
    • Catálogos Exposições Coletivas
    • Catálogos Exposições Individuais
    • Textos | Imprensa
    • Trabalhos de Investigação
  • Contactos
carlosnogueira.webeffect.pt

  • Textos
  • Textos Sobre Carlos Nogueira
  • Espaços da atenção: notas sobre os lugares e o tempo

Espaços da atenção: notas sobre os lugares e o tempo

por RODRIGO SILVA

A extrema atenção é o que constitui a faculdade contemplativa no homem
e a única atenção extrema é um ponto de vista já religioso.
Aquilo a que chamo o elemento religioso é primeiro uma forma de atenção.

Simone Weil, Cahiers

1. Poder-se-ia dizer que a tectónica não é um domínio exclusivo da geologia, mas que concerne uma parte da acção que as artes fazem sobre os volumes que parecem recusar serem meramente representativos de um tema escultórico: serão antes o que podíamos chamar de apresentações tectónicas. Toda a tectónica trata de um duelo entre a permanência e a transitoriedade. Edificar uma morada, uma restância (seria uma tradução possível de demeure), mesmo acometida dos indícios da precariedade (que nós conhecemos do corpo que envelhece e abranda a sua renovação, à ruína, que no amontoar dos séculos, vai restando), significa reconstituir uma ligação entre o outrora e o aqui, entre o agora que não cessa de escoar e o permanecer, para outros tempos: como se pelo gesto que edifica no espaço se restituísse o tempo, que nos está sempre a abandonar. Essa é a convicção que funda a vontade tectónica: que pelo espaço se resista ao tempo. Que na sedimentação (os estratos de cada fiada de lajes) vá restando algo do que a erosão (o cimento desbastado, arrancado a cada laje) faz a já não ser. Algo da nossa natureza temporal se mostra nesse vaivém; a dualidade do tempo: o tempo temporal do que devém, e não cessa de se tornar outro, e o aion («a relação entre o idêntico e o outro que só se pode traduzir numa lei poética do tempo», dizia Hölderlin), imagem diáfana da eternidade. Os lugares ou volumes tectónicos parecem almejar uma forma manifestada de intemporalidade: regulares, estáveis, ostensivamente fabricados, protegidos contra os humores das interpretações e as flutuações do sentido. Contenção e reserva sobre a variação, apresenta-se a repetição que anima a sua condição de construído, como se a exuberância da conotação e da emoção fosse demasiado expressionista ou psicologizante, enredada no delírio antropomórfico da figuração. Como se se inventasse formas que renunciam a ser imagem ou simulacro, que manifestassem apenas uma eficácia sem drama, uma qualidade decantada: uma presença. Derrida diz sobre a presença que, «enquanto presente vivo de exterioridade é também a forma mais metafísica de designar o mínimo, (…) este ser simples de uma identidade é sempre suplementado num jogo de diferenças em movimento, efeito de um descentramento que não quer dar a ver a lógica do suplemento, a infinita disponibilidade de Toth para o jogo das diferenças». Toda a tectónica depõe-nos no meio de uma geometria de diferenças: esse sistema de diferenças, aqui experimentáveis e só dadas nessa alteridade de uma obra, é a arte sem suplementos, uma forma do conhecimento em dosagens homeopáticas (uma pequena diferença no meio do semelhante, informa de um sistema de diferenças a constituir-se). Aqui surpreendemo-nos no nosso litígio ininterrupto com a diferença, com o turbilhão que nos arrasta para a ficção que se quer fixar: a lucidez exige que se interrompa a corrente de sensações da obra, para que ela aceda a um sentido, a uma identificação que divida as águas.

2. O gesto escultórico faz passar a matéria do estado de natureza ao estado de cultura. Este século foi pródigo na diversificação do uso das matérias, procurando explorar livremente a vocação formal contida em cada matéria, cujos comportamentos físicos e realidade energética passaram a integrar no próprio processo criativo a aleatoriedade dos materiais. Essa opção tem como contrapartida um impulso escultórico incerto, mas por outro lado há um novo empirismo: o mole, o pendente, o comprimido, o amontoado, e outros estados instáveis da matéria permitiram decompor a lógica interna dos materiais. Será isto uma poética própria das estruturas industriais? Mas, em rigor, as artes ganharam ou perderam com essa liberdade dos materiais? Não será que a vertigem do experimentalismo com os materiais abriu espaço para um desinvestimento na investigação das formas? Ou aumentaram-se as possibilidades da sensação? Saímos de uma instrumentalização coisista das matérias para uma progressiva imaterialização? Muitas das interrogações da instalação e da escultura passam por tirar a claro o que se passou na nossa relação aos materiais e que se decide nestes problemas: saber se a imaterialização das artes não teve que ver com uma incapacidade de reconhecer a nobreza dos materiais, num afundamento progressivo na sua densidade. Há por isso uma felicidade singular em ver pedra (mesmo depois de um processamento industrial). Como se a plástica ainda fosse animada por um desejo de se eternizar.

3. Nunca percebi porque é que certas tradições se carregam de negro no luto e outras assumem o branco; apesar disso sempre achei que ambas eram legítimas com grande evidência, dadas as propriedades analógicas e metafísicas de ambas as cores. Há no entanto uma tradição da América do Sul que usa o violeta. Aqui chegamos àquela perplexidade que nos leva a suspeitar que é a cultura que precede a história (e a funda) e não o inverso. Ernst Jünger (L'auteur et l'écriture) diz que os indivíduos e mesmo épocas inteiras se podem distinguir relativamente à sua concepção da morte, o que é dizer, pelo modo como, pelo tempo, reconhecem a transcendência. Pergunta a um homem o que ele pensa da morte e saberás quem é ele em vida (recordo-me de ler algures nas cartas a Lucílio). Agamben (Enfance et histoire) comenta a propósito do tempo e das formas de dar forma ao tempo: «a toda a concepção da história está associada uma certa experiência do tempo, que lhe é inerente, que a condiciona e que ele trata, precisamente, de revelar. Do mesmo modo toda a cultura é primeiramente uma certa experiência do tempo, e não há cultura nova sem transformação dessa experiência. A tarefa original de uma genuína revolução jamais seria "mudar o mundo"», pura e simplesmente, mas também, e sobretudo, "mudar o tempo". Só alterando a concepção do tempo, isto é, alterando a ideia que se sustenta sobre as passagens entre o viver e o morrer, se pode interromper este continuum asfixiante de um tempo da imanência a que todas as secularizações que vivemos desde a idade moderna nos confinaram. Não que antes não houvesse uma temporalidade estritamente cronológica nas tarefas humanas: sabia-se é que não era a única e que só podia medir uma parte da nossa existência. Se uma tarefa emerge do que fala Agamben, essa é a de libertar o tempo de uma história cheia de peso e que já pouco cumpre as suas funções de elevação. Quando a escultura deste século se libertou do jugo da monumentalidade e da celebração emergiu também uma possibilidade de voltar a encontrar um propósito arcaico da edificação (e que a arquitectura das nossas cidades cada vez menos está em condições de fornecer, apesar dos Gehrys e dos Eisemans): a de criar lugares onde se respire um outro tempo. Problema vasto, que este modo da escultura volta a colocar.

4. Fazer confinar o tectónico com o arquitectónico, fazer confinar a paisagem natural com a paisagem artificial. O trânsito que vai do mineral e do geológico até ao industrial faz ver como a matéria industriada ainda é parte da paisagem, parte sempre da natureza como reservatório das matérias. Relembrar que o vivente, aquilo que vive, não permuta apenas com o seu reino, mas que a sustentação em vida habita sempre em conformidade com o mineral. Ser notificado por «la materia artizada», de que fala Lezama Lima, é o reconhecimento da lei que a arte despertará naquele que compreende a pertença mútua do gesto artístico e da diversidade de formas do reino natural, que albergam na sua volúpia, a medida, cifrada na sua irregularidade. A precisão da escultura e das suas codas (e que algumas formas da instalação herdaram) é a resposta humana à natureza, que afirma: eu recrio-te.

5. A inspecção dos volumes de a noite e branco, mesmo a mais breve de um espectador apressado que acha que há pouco para ver, pode depor-nos na apresentação da arte como uma experiência que sai do foro mais pacificado do contemplativo, da empatia. Podíamos falar de uma «contemplação activa». Aqui é convocada uma modalidade da atenção que pede um exercício da consciência perceptiva implicando o corpo e a fisicalidade no modo como nós «nos sentimos a sentirmo-nos» no espaço. É nesta duplicação do experimentar-se a experimentar que a arte se revela um poderoso caminho de autoconhecimento. Esta consciência beneficia de um campo de auto-reconhecimento privilegiado nesta forma de «minimalismo da complexidade» (não é uma classificação dessas dos arquivos da história, mas apenas a justaposição de dois conceitos que, apesar de formarem uma espécie de conceito oxímoro, dão conta de duas propriedades que neste caso nascem uma da outra, ou seja, o elemento minimal destas peças oferece uma experiência particular da complexidade, a complexidade do nosso sentido espacial que se apreende particularmente nestas formas). A depuração formal desta proposta e o aparente rigorismo na economia simbólica destes volumes apelam para uma ciência complexa através do simples. Senão atente-se: perante um objecto nós podemos ter impulsos para experimentar os infinitos reenvios da interpretação em termos dos indícios de códigos culturais, as narrativas e histórias que metem em jogo, o seu diálogo com a história recente ou antiga das artes, os temas da nossa vida que exprimem e problematizam, podemos confrontar-nos com as variações materiais das suas texturas e pregnâncias, podemos admirar a sua execução técnica e seu plano de auto-organização formal, etc., um sem fim de aspectos que a obra de arte nos obriga a considerar (umas vezes guiados pelo prazer, outras pelo conceito, outras às cegas). Mas neste tipo particular de intervenções, que nós podemos reconhecer em inúmeras arqueologias das artes, pelo menos de modo mais ostensivo desde os anos sessenta (com o minimalismo, a land art, a arte pública ou outras menos óbvias) somos confrontados com uma situação em que vemos estes objectos engendrarem a sua espacialidade diegética (como no cinema): o peso e a leveza a indicarem a fragilidade da sua solidez, a imobilidade suspensa que parece quase querer anular a atracção gravítica, a contiguidade entre linhas imaginárias que se desprendem da peça e que ela desenha, a geometria da peça e a macrogeometria do edifício, as relações de escala com o corpo, o equilíbrio e tensão dos ângulos… como se a variação de ponto de vista obrigasse a fundar uma morfologia de cada vez que passamos de uma zona a outra. É uma acuidade tectónica, que pode ser familiar à minúcia do geólogo ou à visão analítica de um arquitecto, mas que nunca é demais exercitar: é de uma sabedoria do habitar os lugares (e não é preciso que se trate aqui de geometrias invisíveis, há outras bem mais visíveis em relação às quais temos pouca despertez) que se estruturam também as relações humanas. E isso diz respeito a todos.

6. Heidegger (nunca o pude ler convenientemente porque os seus textos me faziam insolitamente dores de cabeça) apresentou em 1951 uma conferência intitulada «Construir, habitar, pensar». Nesse texto do velho pensador que gostava particularmente de clareiras na floresta, emerge uma preocupação clara: a nossa relação à terra e à natureza teria sofrido uma mutação, porque o acto de construir teria degenerado devido a um empobrecimento da experiência do habitar, o que teria provocado uma desvinculação do acto de habitar e do acto de construir. Nem toda a construção podia hoje acolher esse sentido do habitar e, sobretudo, o sentido do habitar mexia com estruturas mais primeiras que, essas sim, teriam sofrido graves perturbações. Os lugares que edificamos podem ainda servir de alojamento e de abrigo, facilitar a vida prática, ser abertos à luz do sol, mas já não nos podem garantir que uma habitação tenha lugar. Habitar significa um modo primeiro do homem ser: ser homem significa habitar esta terra. Habitar significa também cuidar, cultivar: depõe-nos numa responsabilidade. Alois Riegl no seu ensaio sobre a monumentalidade reconhece também como os gestos de culto (os modos do cuidar) que a partir da modernidade se secularizam em cultura, designam primeiro o acto de habitar um lugar, cuja gestão material, simbólica ou imaginária assume a figura do lugar elevado à categoria de obra: o lugar, pela semiose das suas geometrias, é já escultura, onde as coordenadas espaciais se abrem para abrir em nós uma incorporação, uma ressonância telúrica. Neste habitar como quem cultiva, nasce uma responsabilidade quase ritualizada da apreensão do habitar como traço da condição mortal dos que habitam sobre a terra, mas que os projecta para algo que transfigura esse confinamento, e coloca-nos numa função: habitar é responsabilidade pelas formas que se dá ao habitado. Isto encontra eco no sentido da expressão «cosmos», não como uma noção operatória da ciência mas como uma expressão que designa uma ordem unissonante do mundo, uma co-pertença recíproca entre todos os níveis de realidade como na mónada de Leibniz. Tarefa da edificação: fazer dos espaços um lugar, instalar, ordenar, criar uma possibilidade de ordem, de abrir a novas possibilidades de existência.

7. O branco é a cor mais difícil de pensar. Nem Malevitch (que escreveu textos admiráveis sobre a luz e a cor, que Goethe teria lido, como alguém a quem se podia reunir) escapou à vertigem atractora do branco: se o branco fosse um som soava como uma Sílfide, encantatória mas feroz, pacificadora mas voraz. Há no branco esse poder de absorção que parece querer reunir todas as cores em si, como se numa conciliação do círculo das criaturas, tudo se dirigisse para o branco. Não é só o espectro solar que se esconde na luz, é no branco que o mundo se oculta. No fundo, o branco possui todas as propriedades do negro mas invertidas: é que se ele parece tudo reflectir, tudo absorve simultaneamente (isto nota-se particularmente naquele limiar em que uma superfície negra polida passa subitamente a espelhar e a abrir-se à luz). A sua esterilidade imaculada é também o modo como nos aparecem incertos os fantasmas que sempre assombraram os nossos sabats; a sua temperatura óptica pode ser uma forma de cegueira, mas também pode ser a iluminação mística (a «noite branca» de que fala Elizabeth Kübler Ross, essa que conhece bem as passagens que existem entre as panorâmicas da totalidade que se revelam, entre a noite e branco). Pode ser o silêncio plástico da depuração, condição daquele que deixou de lutar contra a complexa restituição do mundo pelas cores, mas também pode ser aquela forma de astúcia ardilosa (que a arte conceptual ou minimal quase exauriram) do ainda-não. Haverá diferença entre o branco que vem depois e o branco antes da cor?

8. E tudo isto parece nascer do desenho. Essa inteligência sensível, que mais do que uma visão antecipadora é o próprio lugar da invenção, como o reconheceu Valéry no seu texto sobre o método de Leonardo de Vinci: não se trata de uma mera projecção de uma representação mental, mas um espaçar por traços, constitutivo de uma forma irredutível de apreender os corpos e a elementaridade da formação. A prova do desenho procede de um impulso do conhecimento que nasce no trabalho do desenho e só nele, numa simultaneidade rara do saber e fazer em estado nascente. O projecto não é um mero condensar da intenção; ele é processo iniciático de uma forma de inteligência (veja-se o caderno de notas de Le Corbusier ou os esboços de Bill Viola).

9. A ideia da obra escultórica conhece actualmente um renovado sentido da ideia de totalidade: já não apenas totalidade orgânica das partes em relação ao todo, já não síntese auto-sustentada de uma composição, mas sobretudo totalidade que faz corpo com o lugar e com aquele que a experimenta. Em rigor, a escultura sempre foi uma arte da disposição de elementos no espaço, que instauram uma forma de presença, onde o espectador se descobre como integrado num acontecimento onde a passagem do tempo é íntima do percorrer de um espaço. Não apenas uma arte da representação da profundidade e da perspectiva de um «espaço transcendental da imagem», mas de um espaçamento que integrou o espectador em si: o espaço real. Podíamos aqui objectar que os sintomas do uso de novos meios na arte são de um fascínio, cada vez mais intenso, pela virtualização do espaço: aqui, justamente, acontece um acto de resistência a essa nova colonização.

In Carlos Nogueira, a noite e branco, Lisboa, Museu da Cidade/CML, 2000, p. 21-24.

  • Biografia
    • Introdução
    • Exposições Individuais
    • Exposições Coletivas
    • Outros Projetos
  • Trabalhos
  • Textos
    • Textos de Carlos Nogueira
    • Textos Sobre Carlos Nogueira
  • Bibliografia
    • Monografias e Catálogos Coletivos
    • Catálogos Exposições Coletivas
    • Catálogos Exposições Individuais
    • Textos | Imprensa
    • Trabalhos de Investigação
  • Contactos