Persiana de água
por ALBERTO
abro a persiana de água
o fogo desaba rumoroso sobre o mar
árvores de vento protegem os corpos
destapados… simulamos o sonho
consigo tactear o fundo queimado do espelho
onde me sento para escrever… desvendo
a paisagem em redor da casa contigo dentro
espio a dor salgada das visões
que os dedos largam por cima da roupa
dentro das gavetas que não voltei a fechar
assusto-me
quando penso ouvir tua voz de regresso
devorando o humilde sossego do coração
mas o lodo corroeu a sombra do rosto
diluiu a fresca lua tatuada no ombro apressado da noite
uma ave de fogo entra pela janela onde me debruço
ao abandono à desolação do dia a dia
costuro o olhar ao voo migrante dos pássaros
estendo as mãos para os segredos dos tectos ou durmo
na ilusão de encontrar algum rosto
escondido sob o peso do branco bolor
a memória está perfumada de violetas
desprende-se dos pulsos escorre pela cal dos corredores
persigo-me
pela madrugada suja das palavras
com o pressentimento de ter morrido longe do meu corpo
encosto-me às esquinas disponíveis da cidade
amachuco a vida debaixo dos sóis que te evocam
oferecendo a espuma da boca a todos os desconhecidos
Texto propositadamente escrito para a exposição paisagens de (man)dar.
In Al Berto, O Medo, Lisboa, Contexto Editora, 1987, p. 285.