Três instantâneos para o Carlos Nogueira
por BERNARDO PINTO DE ALMEIDA
1. há, nestes trabalhos que nos propõe Carlos Nogueira, uma dupla dimensão conjugada de delicado intimismo, de sugestão lírica, e uma brutalidade matérica evocadora de alguma arte pobre.
na confluência destes vectores adivinha-se (porque a adivinhar se dá) uma exaltação de memória acentuadamente romântica, celebradora dos rios e das montanhas, figuras de uma natureza vista como entidade mais imaginária que real, que a irregularidade das texturas de algum modo simboliza.
2. pretendem (ou assim o quero crer) estas obras a singeleza e a transparência do hai-kai, e como tal deverão ser recebidas, em sua generosa dádiva. São como simples, elementares esboços de uma obra que se sonha como memória, assim como na cinza repousa a memória adormecida do fogo.
ou como imagens captadas ao sabor de viagens sem destino de que restam como vestígios fragmentados de eco quase arqueológico. por isso se dimensionam numa primeira aparência de brutalidade expressiva que logo traem ao confessar a sua origem em meticulosa, amorosa feitura, quer formal quer conceitual.
3. é um trabalho lento e progressivo em que, em mais um atento olhar, surpreendemos as muitas camadas em que se conjuga a sua organização íntima, ao ritmo de uma secreta sedimentação.
e porque à memória vem esta metáfora, olhem-se as obras como, e assim mesmo, as bizarras formas com que nos teima em surpreender a natureza fértil em associações fortuitas e no entanto estranhamente capazes de nos acordar o olhar transfigurante.
dessa vibração vivem: deixemo-nos despertar no seu repouso.
JL 16.03.87
In Carlos Nogueira, catálogo da exposição das nascentes, Porto, Cooperativa Árvore, 1986.