No lumiar, notas sobre as obras de Carlos Nogueira
por YEUDA E. SAFRAN
«O sim e o não em todas as coisas» Empédocles
Na experiência espacial se baseiam os nossos modos de ser; a visão medeia entre tudo o que nos rodeia e o que dele fazemos. Afinal, a sensibilidade humana é a nossa principal via de acesso ao universo. Partindo das premissas que tão espontânea e copiosamente lhe oferece a vida física, a mente trabalha sem cessar. Procura apropriar-se delas, insuflar-lhes espírito, dar-lhes forma. A característica primordial da mente é estar constantemente a descrever-se. «Através do trabalho o homem configura a sua existência natural», escreve Simone Weil em La Pesanteur et la Grâce, «através da ciência recria o universo por meio de símbolos. Através da arte recria a aliança entre o seu corpo e a sua alma.» O real é o que pode ser experimentado de acordo com as interpretações de uma imagem predominante, fundada no horizonte da existência humana. Todas as formas produzidas de modo novo com base em formas preexistentes imediatamente se revestem da mesma objectividade, uma «objectividade ideal». Nas palavras de Willem de Kooning, «O Cubismo foi um movimento de retrocesso, tomando como ponto de partida Cézanne», por este «expor anteriormente o seu projecto. O que se pressupõe não é que se veja, é que se sinta. Cézanne dizia que cada pincelada tinha a sua própria perspectiva, o seu próprio ponto de vista.»
Na obra de Carlos Nogueira, a superfície real das suas pinturas não-figurativas tem de ser apreendida, simultaneamente, como padrão superficial, ao mesmo tempo que os objectos representados são vistos em profundidade e extensão, em termos de harmonias e proporções invisíveis/visíveis. Dado que a suposta possibilidade de produzir uma imitação completa e perfeita da realidade visível é um mito, a percepção complexa destas pinturas convoca no espectador uma forma especial de consciencialização das características da própria superfície pintada. De facto, nesta situação complicada, parece que uma pintura puramente não-figurativa pode conter o mesmo tipo de elementos estéticos que uma pintura figurativa. Na arte contemporânea, talvez só Agnes Martin esteja empenhada em conseguir um efeito semelhante.
A realidade independente que estas obras possuem, o modo como ela integra manchas, pinceladas e figuras, transmite-lhes um carácter artificial específico que as isola de toda e qualquer impressão natural. O método de construção e a escolha de materiais revelam o mesmo grau, o mesmo tipo de sensibilidade; ambos revelam a visão do autor. Destes elementos, em várias combinações, resulta a superfície do objecto «intacto». É o que garante a realidade artística da sua pintura, preservando o seu poder intrínseco da dissolução na realidade factual circundante. Os objectos que representa continuam a fazer parte de uma realidade imaginária.
Os limites podem parecer de longe inacessíveis, eximindo-se ao controlo e à verificação. No caso de Carlos Nogueira, o limiar é como que uma linha de demarcação das águas na geografia de toda a sua obra. É como se, na sua paisagem, toda e qualquer diferença mínima fosse potencialmente a sua própria bacia hidrográfica, por ser capaz de gerar uma micro-paisagem independente, com os seus afluentes, respectivas divisórias e outras ramificações. Foi em Lisboa, em Setembro do ano passado, que tomei conhecimento da obra de Carlos Nogueira. Ainda conservo no olfacto a memória da madeira da escultura maior e, sempre que ocorre a lembrança das estruturas mais pequenas de infinitos pormenores, o meu espírito queda-se imóvel, suspenso dessa evocação. São esculturas que dão a possibilidade de conceber a contingência do nosso espaço. Trata-se certamente de um escultor que experimentou, na carne e até ao desespero, a dor de reconhecer que não existem nem a altura, nem a profundidade, nem a extensão, nem verdadeiro contacto entre as coisas. Como em beyond the very edge of the earth (1997-1998), inicialmente instalada em The Economist Plaza, em Londres, em 1998. Para vermos, temos de perder a consciência de nós próprios e, para tomar consciência do que se vê, temos, até certo ponto, de deixar de ver. Então, se quisermos ver, tendo consciência do que se vê, temos de distanciar-nos um tanto, mas não ao ponto de tornar impossível o regresso e uma nova imersão sempre que quisermos, permitindo-nos este movimento de vaivém, de união e separação, desenvolver uma consciência de nós próprios na Totalidade das coisas. Plotino afirma que «o olhar tem de adaptar-se e assimilar-se ao que vê. Nunca houve olhos que pudessem ver o sol sem se terem identificado com o sol, nem a alma vê a beleza se ela própria não for bela.» Logo, estas obras permitem-nos contemplar a ordem espiritual da mente, reflectida na matéria e enformando-a. A função da imagem é facultar uma apreensão – de natureza intelectual – da inteligência suprema, o nous, a única coisa verdadeiramente real no universo. Assim, as partes não são elementos mas produtos do todo – que, ao contemplar a inteligência do mundo, introduzimos na matéria – e a ideia do todo é assim mais real do que as partes que o compõem. Por esse meio se justifica e engrandece a frugalidade da matéria. Estas obras de arte dão-nos – e nelas deveríamos procurar – mais do que matéria, a Inteligência suprema, a única realidade. Anula-se o que dantes parecia comum, familiar. A contemplação da obra altera a nossa relação habitual com o mundo e a terra, de tal modo que suspendemos toda a nossa forma comum de agir, conhecer e observar, impressionados pela verdade que acontece na obra de arte. De facto, só ficamos satisfeitos quando da impressão provocada pela obra nos fica alguma coisa que, por mais que pensemos, não conseguimos reduzir à clareza de um conceito; muito embora exprima e comunique algo de universal, o seu conteúdo não é passível de definição, explicitação, paráfrase em termos verbais limitados, redução por tradução – e o sentimento provocado pela obra é captado intuitivamente, mais do que compreendido apenas em termos estritamente racionais. Carlos Nogueira constrói lugares. Ou, mais precisamente, deveríamos dizer que esculpe lugares. A arte, a sua arte, torna-se a única testemunha da génese das nossas categorias, parece desempenhar precisamente a função de descrever o mundo numa vivência anterior à do mundo objectivo, ou à relação do eu com os outros eus e com as coisas, no instante do seu nascimento. A percepção destas obras revela um excesso de sentido que não pode ser conceptualizado, que não está ligado nem à sintaxe formal nem às intenções do conteúdo.
Procurar dotar a matéria de significado figurativo para além do actual implica a passagem do objectivo ao subjectivo. O material com que trabalhamos e que vemos representa o corpo, tenha ele sido ou não utilizado para representar o corpo. Só estamos preocupados com a realidade na medida em que constitui experiência nossa. Essa percepção nunca é definitiva. Wallace Stevens diz que
Sempre permaneceria o espírito irrequieto,
Que leva a querer fugir, a regressar
Ao que estava composto há tanto tempo.
O imperfeito é o nosso paraíso.
(«The Poems of our Climate», Collected Poems, p.194)
«Conceitos sem intuições são vazios; intuições sem conceitos são cegas», diz Kant, dois elementos heterogéneos a precisar de imagens para suprir o nosso mal-estar. Quando contemplamos a obra de Nogueira exclusivamente na intenção de a ver existir e patentear a sua riqueza aos nossos olhos, ela deixa de ser uma alusão a um modelo geral, e tomamos consciência de que cada percepção isolada volta a representar o nascimento da iluminação intelectual e contém em si um elemento de génio criador: para reconhecer a pintura como pintura é necessário que, num plano subjacente a esse significado familiar, a momentânea ordenação do visível recomece, tal como no primeiro dia, a delinear a ideia singular do modelo. O que importa nesta obra é a precisão. Procura dar a medida da esfera do existente e do possível. Como diz o poeta Paul Celan, «A realidade não existe. Tem de ser procurada e conquistada.» Celan não está a defender o refúgio na subjectividade nem a construção de um mundo imaginário. Está, sim, a delimitar a distância que a obra tem de percorrer e a definir a ambiguidade de um mundo em que se deu a subversão de todos os valores.
Fala –
mas mantém indivisos o sim e o não,
e dá às tuas palavras este significado:
dá-lhes abrigo.
Dá-lhes abrigo suficiente,
dá-lhes tanto
quanto sabes que foi distribuído entre
meia-noite e meio-dia e meia-noite.
Olha em torno de ti:
vê como tudo salta vivo –
onde está a morte! Vivo!
Fala verdade quem diz a sombra.
(segundo a tradução de Michael Hamburger do poema «Speak, You Also»)
A criação na obra de Carlos Nogueira realiza-se através de interrupções sucessivas. As obras revelam constantemente marcas da sua execução. Quando transpomos o limiar, passamos para uma espécie de reino encantado, um mundo imaginário que foi trazido à vida. Sabemos, de imediato, onde estamos e onde não estamos, simultaneamente.
Antes da descoberta da América, Portugal era o limiar do Oeste. Carlos Nogueira faz-nos sentir que «o limiar do mundo» está de novo em toda a parte e não está especificamente em parte alguma.
New York / Paris, Maio 2004
Tradução de Maria Leonor Teles