De todas as casas, a casa
por RICARDO CARVALHO
dos arquitectos
Na alvorada da modernidade, a arquitectura e a reflexão teórica que a acompanhou fizeram nascer um interesse pelo mito originário da casa, pela cabana primitiva. A procura desse momento fundador da disciplina, e da acção humana sobre o território, passou a ser considerada como o grau zero da relação do arquitecto (do homem) com o mundo. À vontade de identificação desse mito fundador da arquitectura foi acoplada a indagação sobre as matérias que a constituíam – os troncos das árvores que resultaram em vigas e pilares e posteriormente os blocos de pedra que permitiram que esses primeiros elementos superassem a sua efemeridade e desafiassem o tempo.
Este momento de indagação, com arranque no século XVIII, pouco possuía de analítico, retrospectivo ou histórico. Era sobretudo invenção e um modo de relacionamento com um mundo, ou um momento civilizacional, que se desmoronava. Era acção face aos escombros de uma cultura que cedia lugar a outra, onde a arquitectura, habitualmente factor de estabilização da acção humana, actuou como sismógrafo dessa mudança. Foi neste contexto que se instalou um território fronteiriço, complexo e fértil, entre arquitectura, indagação filosófica e acção artística onde germinaram propostas culturais de grande radicalidade.
A cabana primitiva esteve no centro dessas lucubrações e estimulou o interesse e a repulsa dos mais variados arquitectos. Os elementos que constituíam essa cabana fundadora estavam por descortinar, bem como a sua aplicação a uma arquitectura civil num mundo progressivamente mais industrializado. Era a verdade da arquitectura, aquilo que constituía a carga conceptual mais sedutora mas também a mais moralista.
Piranesi, o arquitecto, reagiu violentamente contra o dogma da simplicidade da cabana primitiva, propondo nos seus carceri arquitecturas com escadas e pontes que provinham de lugar nenhum e permitiam chegar a lugar algum. Antes e depois dos espaços desenhados por Piranesi (espaços que não nos são dados a ver nas gravuras) estava o sublime ou o espaço do monstruoso. «O sublime (elevado) desagua no limite e a medida (classicismo do belo) em direcção ao ‘infinito’. Este último, ao tornar-se patente, revela-se como o desmedido, gigantesco e colossal, o monstruoso e sinistro. O sublime mantém-se todavia dentro do limite, sublevare, ainda que aponte sempre mais para além. Se se quer trazer ao mundo esse ‘mais além’ comparecem o monstruoso e o demoníaco. Mais além só há monstros», afirma o filósofo Eugenio Trías (1).
Os arquitectos dividiam assim o campo da indagação entre a simplicidade de uma arquitectura fundadora, despida de artifício (mas não do artifício maior que era a sua própria criação), e uma arquitectura capaz de convocar o desconhecido, a emoção no seu estado primitivo ou arcaico.
Herdeiro das indagações em torno da cabana primitiva, que nenhuma investigação antropológica podia provar como verdadeira, e da vertigem do monstruoso, foi John Ruskin. Este pensador britânico, já em pleno século XIX, questionava no livro As Sete Lâmpadas da Arquitectura se os arquitectos não poderiam definir um sistema de validação universal da arquitectura – um sistema de validação universal das formas. Da aspiração a um universalismo cultural resultou o shock ou colisão dos mundos apolíneo e dionisíaco identificados por Nietzsche na Origem da Tragédia: «A evolução progressiva da arte resulta do duplo carácter do espírito apolíneo e do espírito dionisíaco. […] É, pois, às suas duas divindades das artes, a Apolo e a Diónisos, que se refere a nossa consciência do extraordinário antagonismo, tanto de origens como de fins, que existe no mundo grego entre a arte plástica ou apolínea e a arte sem formas ou musical, a arte dionisíaca. Estes dois instintos andam lado a lado e na maior parte do tempo em guerra aberta […] até que por fim, devido a um milagre metafísico da ‘vontade’ helénica, os dois instintos se encontram e abraçam para gerarem a obra superior que será ao mesmo tempo apolínea e dionisíaca – a tragédia ática.» (2)
O desejo de recuar aos fundamentos primeiros do conhecimento ocidental e poder recuperar a força avassaladora do mundo arcaico nunca deixou de estar presente no trabalho dos arquitectos. Esse mundo está presente nos cadernos de viagem de Le Corbusier pelo Mediterrâneo e nas referências à arquitectura dórica de Paestum de Mies van der Rohe. É como se permanecesse um rasto dionisíaco nas suas propostas, devidamente sujeitas a uma síntese construtivista, levada a limites de radicalidade apolínea. Mas apesar das propostas destes arquitectos, o século XX instaurou um tema antagónico ao mito fundador da casa: a necessidade imperativa da casa colectiva ou a impossibilidade de sistematizar o individual. Numa palavra, o tema repetiçãoinvade as fundações de uma cultura anterior construída em torno do irrepetível. Mies van der Rohe, conhecedor dos temas da sua época, procura sintetizar todas as casas num único tema, os pavilhões/casa, defendendo a permanência dos mesmos face ao correr do tempo e à mutação do uso. Le Corbusier, não só conhecedor dos temas da sua época mas também um antecipador dos mesmos, intensifica nos seus edifícios do pós-guerra a motivação arcaica ou primitiva dos mesmos.
Antonio Monestiroli, arquitecto, fornece-nos uma conclusão: «Construir um edifício é um acto de necessidade, representar o seu valor um acto civil; significa assumir a tarefa de o tornar manifesto até que todos o reconheçam como parte da cultura do habitar. Entendido assim, o conhecimento da função requer grande sapiência. Este é o motivo pelo qual a maior parte dos arquitectos modernos permanecem simplesmente funcionalistas, porque não souberam compreender a passagem da função ao valor. […] Assim, o conhecimento da casa, através da função do habitar, conduz à definição do seu valor no nosso tempo, à qual se dá uma forma estável e representativa, uma forma monumental»(3).
do artista
O trabalho de Carlos Nogueira procura restituir os elementos originários da construção ao seu estado primordial, como se da invenção da cabana primitiva se tratasse. O artista não pretende recorrer ao fazerarquitectónico, a sua obra será equívoca se for vista assim. O que o artista toma para si são os temas da arquitectura, o que está antes do seu acontecer, e única matéria realmente universal. Não por acaso os arquitectos estabelecem uma natural empatia com os seus trabalhos, estes reconhecem neste trabalho artístico um território comum de indagação – um princípio. Mas depois disso os caminhos bifurcam-se.
Voltemos à cabana primitiva para localizar o lugar do princípio no trabalho de Carlos Nogueira. No seu processo de trabalho o artista não recorre a qualquer aproximação formal ou estilística às figurações que os arquitectos deram ao tema ao longo dos séculos XVIII e XIX. A mimese não se constitui como um recurso. Os elementos canónicos dessa construção – o tronco ou a coluna, o fecho de uma cobertura ou as ramagens – não acusam a sua presença ou figuração. Se assim fosse, a sua abordagem correria o risco de se tornar pitoresca. Não o é. É escassa no recurso de materiais e em modo construtivo e está sujeita a uma redução expressiva apenas permitida pela geometria euclidiana e pela repetição de um elemento. Os materiais convocados para estas esculturas e instalações estão dessacralizados, são banais, estão disponíveis e sujeitos a essa geometria que contraria o caos e actua como tradução da procura do lugar do princípio.
Esse lastro de filiação na invenção da primeira casa é menos evidente do que a herança construtivista (que vai de Malevitch até à minimal art)(4) que se revela na síntese e redução dos elementos construtivos ao mínimo denominador comum e no recurso à repetição e empilhamento de elementos. Contudo, com a observação continuada do trabalho do artista parecem revelar-se progressivamente o domínio da herança pré-construtivista, ou seja, abre-se um campo onde convive a tensão entre um mundo apolíneo e um mundo dionisíaco, um campo que a geometria não domina incondicionalmente.
O primeiro é representado pela cabana primitiva (pela sua verdade, ou melhor, pela vertigem da verdade, pelo apelo do princípio ordenador) e pela geometria capaz de regrar o caos. O segundo vem daquilo que é acidente ou instabilidade. E isso pode ser o reflexo do céu no interior de uma das suas esculturas (o céu está sempre a mudar, e é para nós o desconhecido), os espaços encerrados no interior das peças, que não nos são dados a ver, e que desafiam a estabilidade e imutabilidade inicial conferida pela geometria e pelos materiais. A tensão está também nos desenhos de céu (desenhos que têm a presença de objectos) onde a sobreposição e a contaminação de matérias e tinta desafiam a permanência imutável da superfície branca.
Mas retomemos Ruskin e a sua proposta de validação universal das formas, proposta que a arte e a arquitectura mantiveram no seu inconsciente por toda a modernidade. Também na escultura de Carlos Nogueira é convocada essa aspiração universal e holística no modo regrado da disposição das peças, sejam elas colocadas no espaço público ou na galeria. Existem como se estivessem desde sempre nesses lugares, de um modo perene aguardam o estado de ruína para que seja então possível uma nova descoberta das mesmas. Mas sabemos da impossibilidade desse modo de relação com o tempo hoje, sabemo-lo por todas as formas de expressão cultural. Associada a uma aspiração pelo universal está sempre o acidente – que em Carlos Nogueira pode ser o carvão ou a cal, mas também os espelhos ou o som.
«A estabilidade ou perenidade da obra, profundidade ou autenticidade da experiência produtiva fruidora são certamente coisas que já não podemos esperar na experiência estética da modernidade avançada, dominada pela potência (e impotência) dos média. Contra a nostalgia pela eternidade (da obra) e pela autenticidade (da experiência) é preciso reconhecer claramente que o shock é tudo aquilo que resta da criatividade da arte na época da comunicação generalizada.»(5) afirma Gianni Vattimo. Mas mesmo face a esta impossibilidade da estabilidade ou perenidade da obra o trabalho de Carlos Nogueira permite que voltemos sempre ao princípio, e de cada vez que se concretiza esse encontro amplia-se a nossa relação com o mundo.
(1) Eugenio Trías, Logica del Limite, Barcelona, Destino, 1991.
(2) Friedrich Nietzsche, A Origem da Tragédia (1872), Lisboa, Guimarães Editores, 1953.
(3) Antonio Monestiroli, «Le Forme e il Tempo» in Mies van der Rohe, Ludwig Hilberseimer, Milano, Città Studi, 1984.
(4) A estratégia conceptual da arte minimal relaciona-se com o trabalho de Carlos Nogueira apenas na economia de meios expressivos. Daí em diante parecem esgotar-se as afinidades.
(5) Gianni Vattimo, A Sociedade Transparente (1989), Lisboa, Relógio d’ Água, 1992.
In Carlos Nogueira, desenhos de construção com casa . e céu, Almada, Casa da Cerca, 2006, p. 28-43.