A vida passa por aqui
por GISELA ROSENTHAL
E palavras como Deus e Morte e Sofrimento
e Eternidade devem ser de novo esquecidas.
E devemos ser outra vez tão simples e sem palavras
como o grão que cresce ou a chuva que cai.
Devemos só ser.
Etty Hillesum
Projectar. Construir.
O trabalho de Carlos Nogueira inicia-se sempre da mesma maneira, recorre a uma certa disciplina preestabelecida e cumpre alguns passos premeditados. Acaba sempre, porém, por se aventurar por caminhos novos, nunca trilhados, únicos. No princípio estão o reconhecimento e a contemplação dos espaços onde irá intervir assim como das linhas de força nas quais irá interferir. A recolha de informações espaciais e ambientais permite-lhe depois projectar a ocupação dos espaços disponíveis «numa perspectiva estética» como explica o próprio artista, «tendo sempre em atenção as pré-existências, quer, por exemplo, ao nível da orientação, quer ao nível da luz ou de outros elementos e fazendo sempre que a minha intervenção confira… uma outra dimensão que, antes de ser ao nível da volumetria, se situa ao nível das propostas do sentir... recuperando forças e energias que elas próprias já possuem e que especialmente me interessem.» Por outro lado, continua, «projecta-se sem desrespeitar as minhas necessidades de construção e de organização da própria peça mas para se integrar com linhas de tangência e de continuidade…»(1) A primazia do sentir e a aspiração de despertar as sensações para outras dimensões do ser – ambos ecos contemporâneos de gestos imagéticos inaugurais que Kasimir Malevitch(2) entendia realizar no início do século passado pela «supremacia da pura sensação», da «superfície libertada da pressão dos objectos» e da «verdade única, apenas existente na ausência de objectos, no nada» – são características fundadoras da obra de Carlos Nogueira desde o seu início nos anos 70.
No caso concreto de desenhos, construções e outros acidentes, a atenção do artista, levada à tectónica e energia existentes no espaço, resulta na concepção de um conjunto de desenhos e construções que se articulam nas quatro salas do espaço arte contemporânea, concretizando um percurso ao qual apenas o espectador pode conferir o seu sentido pleno. A experiência directa do futuro espectador é, aliás, o eixo central em torno do qual se realiza o trabalho de Carlos Nogueira. Tudo lhe é consagrado, desde a concepção espacial até aos mais pequenos gestos na montagem (colocação dos desenhos exactamente ao nível do olhar ou ligeiramente por cima ou por baixo; encenação de construções no espaço em escalas que têm o seu corpo físico e o seu olhar como referência, etc.)
O texto que se segue ensaia um entre muitos olhares possíveis para quem esteja disposto a habitar de corpo e alma as moradas que perfazem o trajecto proposto pelo próprio artista. Antes de mais, apresenta as paragens da complexa intervenção na sua materialização no espaço. Nos desenhos de paisagens construídos e nas grandes construções, o artista junta matérias humildes e insignificantes em si, oriundas de um quotidiano banal omnipresente no mundo contemporâneo, criando fortes tensões pela heterogeneidade da sua natureza. O efeito paradoxal deste confronto é mediatizado por elementos que intendem trazer à luz a consciência aprisionada nestas matérias (por vezes é a própria luz que o faz), abrindo o olhar instantaneamente para a beleza e as infinitas dimensões que habitam a essência do Ser nas suas mais ínfimas manifestações. O texto deixa-se também seduzir pelo delicioso jogo de títulos dados aos desenhos, onde o artista se serve conscientemente da inata necessidade humana de nomear as coisas para assim lhes dar sentido. A óbvia disparidade entre percepção imediata e nomeação instala inquietação e dúvida, desmontando e, porventura, suspendendo por momentos a actividade mental incessante antes que esta recorra de novo à tão urgente integração da coisa percebida graças à comparação com experiências armazenadas na memória. Questionando justamente o automatismo deste mecanismo mental, Carlos Nogueira equaciona a relação entre o que é e o que nós percebemos do real, abrindo, no interstício da percepção que erra entre um e outro, os olhos para o que chamaria a natureza haiku intrínseca à operação estética de alto risco com a qual o artista desafia os limites do seu próprio fazer entre o efémero e casual das matérias utilizadas e a permanência à qual o seu trabalho aspira. A sua linguagem de incerteza e dissemelhança, que permite este proceder, abre-se a cada momento ao acaso e acidente, reage como um sismógrafo às forças energéticas presentes nos espaços de intervenção e leva o espectador à experiência directa de territórios interiores que lhe possam ser desconhecidos. Não surpreende então que o silêncio esteja sempre tão intensamente presente nas intervenções do artista e que elas transmitam a frescura e clareza da «primeira vez», de um momento inaugural. Contudo, como o artista, o texto não resiste totalmente ao universo sugerido pelos títulos, cedendo ao indomável desejo humano de narrar histórias ou, antes, de narrar a sua história e visão do mundo.
Habitar
The scheme of a construction is a combination of
lines and the planes and forms which they define.
It is a system of forces. Vladimir Tatlin
Anything can be painted without representation.
Agnes Martin
Desenho de nuvem. Desenho de escada.
Uma chapa de alumínio, amachucada pelo artista até ganhar uma forma mais ou menos circular, paira no alto da parede. A luz brilha sobre a sua superfície irregular, a escuridão das reentrâncias prolonga-se na sombra que deita sobre a parede branca. Material industrial, transformado neste contexto do aqui e agora em «nuvem» pela mão e vontade do artista – que com toda a razão se considera simultaneamente artesão e operador estético. Por baixo, apoiado com duas das pernas no chão e as outras duas contra a parede, um velho escadote de ferro naquela cor intensa que a ferrugem dá às coisas. No seu frágil equilíbrio esta «escada» não aguentaria o peso de pés que por ela quisessem subir. A luz, na sua descida, demora-se no vazio por entre as traves que outrora apoiavam os seus sete degraus.
Desenhos de vento.
Doze barras de ferro redondas e enferrujadas, de diferentes comprimentos, nascem todas na mesma parede, prolongando-se em ondas energéticas pelo espaço fora. «Tem-se uma linha, sabe-se onde ela começa, sabe-se um bocado sobre o modo como ela viaja através do espaço. Mas onde acaba? Um novo caminho para viajar através do espaço, relacionando origem e movimento.»(3) Ou talvez, na dimensão que o título sugere, doze sopros de vida, acordados pela brisa matinal, que se lançam, sob signos diferentes, às tempestades do mundo. As suas raízes alinham-se horizontalmente em intervalos regulares na parede.
Desenhos de paisagens construídas (desenho de planta de casa. desenho de casa escura.)
Montados em estruturas de ferro bruto, seis desenhos apresentados em pares de crescentes dimensões, em duas paredes da mesma sala. Desenhos realizados há mais de vinte anos, agora recuperados, que remetem o artista para os primeiros desenhos da sua adolescência. Continuam a evidenciar o mesmo desejo de delimitar planos por linhas, criando espaços divididos em dois ou três ou ainda articulados por múltiplos destes números, aplicando sempre, mesmo que muito discretamente, uma regra predeterminada. Antigamente, suponho, surgiram por brincadeira no próprio chão, com matérias quotidianas ao alcance da mão, construindo desenhos de casas bipartidas que já nesta altura equacionaram as tensões dos opostos. Hoje o artista junta materiais industriais – velhos cartões, chapa ondulada, madeiras, cobertos por vezes com tinta industrial branca ou preta que transfigura as suas texturas rugosas originais. Plantas de casas, fundamentos lançados, porventura alicerces de futuras edificações mais sólidas, ou seja, efémeras paisagens construídas ainda e sempre nos interstícios da plataforma física do espaço-tempo contínuo. Parecem obedecer, quase secretamente, tanto nas medidas da totalidade do desenho como na sua construção interna, à chamada Lei do Três. Lei que, segundo tradições antigas, rege toda a criação, lei que concilia os opostos, a tensão da dualidade sempre presente no mundo real(4). Traindo as intensas vivências às quais a casa dá abrigo, estas tensões são indexadas nos desenhos pela oposição entre preto e branco das páginas de um livro aberto num deles ou ainda pela subtil diferenciação de planos brancos noutro. O terceiro elemento por vezes intensifica os antagonismos, instalando uma maior desordem, ou dissolve-as, noutros casos, trazendo harmonização e equilíbrio.
I find that art which doesn’t tell you anything about what
things are – but rather the opposite – is the door to seeing
some thing as it is.
Richard Tuttle
Três construções.
As três restantes salas do eac são ocupadas por um igual número de construções de dimensões que tomam por referência o corpo humano. Articuladas por estruturas férreas, sobrepõem vidros foscos, assentes em superfícies espelhadas, que por sua vez escondem portadas antigas, que mantêm as suas cores desbotadas originais. Outra estrutura férrea por baixo das portadas confere às construções uma aparente leveza, como se pairassem sobre o chão ou à frente da parede. Existe uma óbvia ligação entre estes três conjuntos construídos, tendo todos a mesma profundidade (0,34 m), variando, contudo, o número de elementos que articulam e as respectivas alturas e larguras dos vidros, espelhos e portadas sobrepostas. A primeira construção junta quatro elementos alongados e estreitos, com superfícies de espelho-vidro leitoso que ultrapassam com os seus dois metros e vinte de comprimento a estatura humana e podiam dar, com a sua largura de meio metro, espaço a um corpo humano deitado. Colocados no chão, a pouca distância uns dos outros, mantêm em segredo grande parte das portadas que as sustêm. Inundadas pela luz que cega completamente o seu efeito de espelho, as quatro lâminas esverdeadas pousam numa imobilidade imperturbada de reflexos do espaço envolvente. As outras construções juntam, cada uma, dois elementos que são sensivelmente mais pequenos e mais largos (0,63x1,25/0,53x1,25m e 0,45x0,83/0,45x0,83m, respectivamente). Penduradas nas paredes nas duas últimas salas, desvendam gradualmente a camada fundadora das portadas. À primeira construção foi retirado o vidro-espelho da direita. Encostado contra a estrutura férrea da sua moldura, revela parte da portada que escondia. Na segunda, o vidro-espelho que cobria a portada da esquerda, foi colocado no chão do lado direito da construção de modo que aqui se possa descobrir o espelho por detrás do vidro. À portada completamente desvendada, ligeiramente recuada, opõe-se a superfície de espelho-vidro leitoso ao lado.
De um modo novo, Carlos Nogueira revisita nestas três construções a problematização da representação do real, questão levantada na Arte Ocidental a partir do início do século passado, curiosamente a época à qual pertencem as portadas. Estas tapavam originalmente portas envidraçadas ou janelas e davam, quando abertas, sobre o mundo real. Integradas na construção, ocultam o sítio emblemático que, ao longo de séculos, esteve reservado, primeiro nas casas de nobres e burgueses, depois no cubo branco de museus e galerias, àquelas «janelas sobre o mundo». Ou seja, ocupam o lugar dos quadros, que desde a Renascença e até à Modernidade, ensaiaram na pintura o simulacro da visão perspectivada do ser humano que se coloca a si-mesmo e à sua perspectiva sobre as coisas no centro do mundo. Escondendo-as por superfícies espelhadas o artista tematiza, na camada sobreposta, o espelho que até à Modernidade fora metáfora de auto-descoberta e instrumento de auto-representação dos pintores por dentro da mesma mundividência. Já Duchamp ironizara a imagem espelhada como representação do real que reflecte. Pintores como Rainer Fetting ou Francesco Clemente, por exemplo, questionaram-no mais tarde nos seus auto-retratos, enquanto Pistoletto minou de modo radical o seu duplo papel na arte, integrando-o como objecto real nos seus auto-retratos. Baralha definitivamente a convencional divisão entre espaço real e espaço imagético pela inclusão do espectador na imagem. A estas duas «camadas históricas» das construções juntam-se vidros foscos que tiram o efeito especular ou reduzem-no a uma imagem reflectida como mera sombra. Com um gesto contemporâneo, o artista recusa ao vidro-espelho a capacidade de ser imagem ilusória da realidade, mantendo o seu antigo lugar vazio. Remetido, mais uma vez, ao próprio acto de percepção, o espectador fica entregue ao intervalo por entre a expectativa frustrada de encontrar a sua própria imagem e a do espaço envolvente projectadas no vidro-espelho e a contemplação da natureza intrínseca da superfície intacta. Destituído o simulacro, o que encontra por detrás? Uma portada que outrora se abria sobre o real, mas que agora está fechada. E ao lado o silêncio de uma superfície vazia. Será que, para alcançar uma visão do real, é apenas necessário afastar-se a si mesmo e às suas projecções do centro da superfície imagética, prescindindo assim do protagonismo que o ser humano sempre se arroga em todos os acontecimentos? A questão da relação entre representação e espaço real adquire outra virulência, quando transferida ao condicionamento do qual a visão humana padece, uma vez que, praticamente desde a nascença, é orientada pela convenção perspectivada. As três construções e a experiência que proporcionam, encenam uma possível transformação da percepção como emancipação de uma excessiva focagem num ponto de vista único e auto-centrado graças à dissolução da projecção do(s) Eu(s) fictício(s) sobre o real. A isenção da imagem (e auto-imagem) perspectivada é o regresso a uma visão que nele esteve sempre presente, que é apenas esquecida ou como que adormecida em camadas mais fundas. Trazida à luz, pode instaurar, através da movimentação do espectador no espaço real, uma relação directa e livre com o campo energético à sua volta e revelar-lhe a natureza do fluxo incessante da realidade da qual é parte integrante.
Transformar
Desenho de casa. desenho de água. Recorrendo a uma escala e a uma posição na parede como se o olhar os descobrisse de um voo altíssimo sobre a Terra, os quatro desenhos da última etapa do trajecto acentuam a leveza já latente nas últimas duas construções que iniciam uma progressiva libertação da atracção gravitacional. O desenho de casa é uma simples construção de placas de madeira finas, pintada de branco com duas divisões, uma fechada, outra aberta ao céu. Assente num pequeno suporte metálico paira face à parede. Se o desenho de casa escura na primeira sala, construção igual, mas pintada de preto, está presa a uma matéria grossa e rugosa, aqui a casa apresenta-se sob o seu aspecto solar, mesmo que se encontrem por baixo do branco ainda alguns vestígios da sua anterior natureza. Acompanha-a o desenho de água, minúscula estrutura de um conjunto de arames, pintados de vermelho vivo. Como se fossem raízes espalhadas primeiro, juntam-se, atados por outro arame, para correr paralelamente uns aos outros, começando a ramificar-se depois, criando um estuário de filigrana transparência com delicados pontos de intersecção. Aqui a estrutura é posta na horizontal, flutuando face à parede. Mas também podia erguer-se verticalmente como uma pequena árvore ou talvez como um ser humano, habitante da morada vizinha. Caminho de água, árvore ou ser humano, a todos atravessa o mesmo fluxo vital de energia, alimento que irradia tanto do Céu como da Terra.
Desenho de casa. Desenho de guarda-escuro.
Na última sala, o desenho de casa é um pequeno ninho de pássaro. Frágil construção orgânica de gramíneas secas e tufos de algodão que, com um gesto duchampiano, foi deslocada do seu ambiente natural e integrada no percurso da exposição. Ao lado, o desenho de guarda-escuro, uma pequena construção de placas de madeira finas, pintada de branco com uma tampa articulada que está aberta. O pequeno rectângulo alongado não deixa de lembrar a forma clássica das derradeiras moradas do corpo humano. Já não serve para guardar o escuro, como lhe propõe o seu título, uma vez que a luz entra plenamente. Nas suas paredes interiores uma negridão brilhante lembra este destino e, ao olhar de perto, os vestígios da escuridão revelam outros espectros de cor: um azul intenso como o de um céu ao amanhecer e um encarnado vivo como se, agora, guardasse o tesouro secreto de uma nova vida. Diz o artista que a visita à exposição também se podia iniciar com estes dois desenhos para depois continuar o percurso com os desenhos com os quais o começámos. E Carlos Nogueira deixa ainda escapar que assim se tratava de um círculo vicioso, ou seja, de um circuito fechado, onde princípio e fim se confundem e que não tem saída possível. Parecer-se-ia então com os ciclos do tempo que simboliza a figura do Ouroboros, a serpente que morde a sua própria cauda. O ninho-casa abandonado, construído pelo instinto de sobrevivência como abrigo para a reprodução da vida, é memória da anual viagem migratória aos quais os pássaros, depois de breves ensaios de voo, se confiaram. Será que o desenho do guarda-escuro vazio conta uma história parecida que apenas a nossa percepção convencional tem dificuldades em ver?
Lisboa, Novembro de 2008
(1) Entrevista a Maria João Seixas, Pública, 9 de Setembro de 2001
(2) Kasimir Malevitch, Écrits 1. De Cézanne au Suprématisme, Lausanne, Éditions L’Âge d’Homme, 1974.
(3) Richard Tuttle.
(4) Esta lei das antigas tradições iniciáticas foi, para dar apenas um exemplo entre muitos, recuperada no início do século XX pelo médico e sacerdote George Ivanovitch Gurdjieff na sua procura de um conhecimento universal do real. «Everything obeys to the Law of Three, everything existing came into being in accordance to this law. Combinations of positive and negative principles can produce new results, different from the first and the second, only if a third force comes in.» Gurdjieff, Views from the Real World, Londres, Routledge & Kegan Paul, 1973, p. 195.