Do corpo do espaço ao espaço do corpo, uma vertigem sobre o infinito
por SARA ANTÓNIA MATOS
E se as propostas mais radicais de museus modernistas fossem simultaneamente projectos para um novo tipo de casa? E se a «domesticidade» fosse ela própria fonte de modernidade?
É com estas questões que começa o texto de Beatriz Colomina sobre a ideia de um Museu Sem Fim(1), protagonizada pelos arquitectos Le Corbusier e Mies van der Rohe. Na perspectiva de Colomina este museu interminável estaria permanentemente em construção e englobaria em si todo o mundo – reproduzindo sincronicamente a sua dinâmica.
Vem isto a propósito daquilo que sabemos sobre a obra de Carlos Nogueira, que está, desde sempre, ligada à arquitectura. Não especificamente à arquitectura dos museus, não particularmente à arquitectura doméstica, mas à arquitectura em si – à arquitectura enquanto disciplina de projecto. Projecto do espaço, no sentido lato.
Avancemos um pouco sobre a proposição de Colomina e perguntemos: «casa de quê»? Quando se faz referência ao universo da casa não é difícil estabelecer uma relação imediata quer com a disciplina da arquitectura quer com as técnicas de engenharia implicadas no levantamento de habitação. Se estas referências não são estranhas à obra de Carlos Nogueira, a verdade é que o seu campo de abordagem e investigação plástica não diz respeito aos métodos empregues na edificação mas à construção da dimensão metafísica da existência.
A dificuldade e o paradoxo que se colocam ao artista – resultado consequente do desafio anteriormente exposto – prendem-se com a impossibilidade de fixar e materializar as dimensões sensíveis e «a-sensíveis» da existência. Quererá casa, ou Domus, significar lugar de experiência íntima e irregular?
Coloquemo-nos neste lado possível da interrogação, para constatar que a produção do espaço está tão ligada ao projecto como ao incidente, tão ligada ao pensamento como ao que lhe escapa.
Quer isto dizer que a disciplina de projecto ultrapassa a dimensão programática que geralmente a caracteriza. No mesmo sentido, por mais que o espaço museológico cumpra o seu fim institucional, a obra nele exposta, como as suas paredes e desenho, são lugares a habitar, a percorrer. Como casas domésticas – leia-se, como espaços de vivência – também os espaços institucionais da arte são necessariamente recobertos de experiências descontínuas ou, mais precisamente, reinvestidos de vida.
Há muito sabemos que a concepção e o pensamento sobre o espaço releva das suas descontinuidades. Desde a sua tomada cartesiana à retomada pela filosofia epistemológica, o fluxo da experiência vivida é, de uma ou outra forma, reclamada para a sua formulação.
É neste espaço de interrupções que vamos detectar a obra de Carlos Nogueira. O seu projecto do acidental – assim se poderia chamar – reúne aquilo que nas disciplinas de projecto parece ser irreconciliável. Quer dizer, o seu trabalho congrega o que pode ser concebido, pensado, determinado e, simultaneamente, o que foge à regra.
Trabalhar com base neste substrato implica mencionar qualquer coisa que se situa entre um objecto e outro – deixando marcas efectivas na experiência – mas que não deixa, contudo, testemunhos significativamente palpáveis ou até detectáveis. Trata-se de uma dimensão que escapa à ordem dos sentidos imediatos e da percepção empírica e, portanto, é uma construção que não pode senão ser flutuante.
Neste âmbito, a obra ou aquilo a que ela induz não se confina especificamente a cada objecto concreto da exposição mas àquilo que sobrevive e se localiza entre o conjunto. Daí percebermos que o que nesta exposição nos comunica – ou melhor, aquilo que nos afecta, conduzindo-nos de elemento a elemento e fazendo-nos procurar nada mais nada menos que aquilo que não está lá – são as figuras de substrato volúvel.
Que imagem é esta que sobrevive nos vidros da obra de Carlos Nogueira e desaparece antes que a possamos apreender? Que figura é esta que pede para ser vista mesmo se a sua imagem ainda não existe? Que arquétipo é este que, quanto mais a sua obra cede a um ímpeto de depuração, mais presente se afirma?
O que se procura nos objectos é justamente aquilo que sobrevive entre o vazio deixado por eles. O que se procura é aquilo que resiste na superfície laminar.
Poderíamos sustentar que existe uma necessidade de inscrever, gravar ou, ainda, deixar testemunho mnemónico daquilo que à partida se apresenta como volátil. Este projecto passaria por ensaiar uma representação possível para o que «paira entre» ou «antes». Entre disciplinas, antes dos sistemas de representação, entre imagens do pensamento, antes dos cinco sentidos, entre pontos ou estados fixos, fora de épocas, aquém e além. Afinal, é também esse o sentido etimológico do termo «meta», de metafísica. Nomear o que está «antes»(2).
Tarefa primordial da arte que parece, sempre paradoxalmente, querer ocupar-se daquilo que lhe foge e registar, gravar, fazer sobreviver o que não se pode cristalizar.
Afinal, não pode a história, nem a arte, libertar-se do próprio desígnio. Não pode a arte não deixar traço, se ela consiste justamente na encarnação desse substrato laminar, campo de significação onde adquire e produz sentido. Essa produção de sentido é independente do seu alargamento para outros campos, independente das tensões laterais que procure explorar para se legitimar e, acima de tudo, independente do paradigma cultural vigente: seja este liderado pela crença (que parece estar a ser timidamente recuperada), seja demarcado pelo conhecimento científico e racional (também uma crença ancorada no modelo determinável).
Ao encarnar este espaço sem topos o artista combate um processo de des-significação alargado que o mundo contemporâneo, tendo em vista fins económico-utilitários, tende a abolir secando o homem das suas crenças e compulsões vitais.
Zona de tensões vertiginosa, uma vez que reside precisamente nisso, na convicção da sua vivência e representação, na crença da sua encarnação. Processo produtivo e compulsivo onde circulam as forças da história, as mesmas que esmagaram a «naturalidade» e sobre a sua ruína erigiram um espaço de acumulação: de saber, tecnologia, dinheiro, obras de arte e símbolos. Se o conflito civilizacional inseparável da existência humana nas suas contingências epocais se furtar a produzir «espaço» ao qual são inerentes contradições e conflitos, o seu potencial não é cumprido e o sistema torna-se hermético e estagnado. Mas se o projecto – inerente ao campo com o qual identificamos o autor e também ao da própria vida – pode, até certo ponto, ser deliberado, é inequívoco que, na sua efectivação, há uma fracção que escapa. É nessa dimensão paradoxal que reside a potencialidade do projecto.
Domus – construção de um lugar habitável – significaria, então, construção do lugar do Eu, projecção vertiginosa sobre um vazio inaudito para dele fazer emergir sentido.
Trata-se de um acontecimento de ordem singular, eventualmente interior, que permita a cada um e cada obra: abrir, significar, diferenciar e produzir subjectivação. Esta, existe justamente ali, onde a norma não é regime.
Tal operação implica problematizar aquilo que rompe com a doxa (da imagem, do pensamento, da representação, das referências) e, portanto, gerar as formas de representação e afirmação possíveis para algo que se situa no seio do próprio a-representável ou impensável.
Sem querermos aflorar o assunto com o rigor e a exactidão filosófica que o mesmo exige podemos sugerir que a representação do que é volátil supõe uma revisão radical dos paradigmas correntes. Tal desafio exigiria um empreendimento impossível a que, de certa forma, todos os artistas se lançam: reformular o próprio pensamento (os fundamentos, as formas do fazer e todos os consensos instituídos). Seria a partir desta destruição da imagem comum – reelaboração perpétua e paradoxal, intrínseca à própria prática artística – que se abre um campo outro de pensamento e, simultaneamente, de representação. Deste modo, através da conversão do paradoxo em força, o artista produziria um campo de significação, singularidade e diferenciação. Dele adviria uma coerência interna, própria ao desenvolvimento de uma linguagem singular, das valências eskills do autor.
Assim, é no desvio, estranho ao projecto, que a dimensão daquele é potenciada. A concretização tem um carácter imprevisto, quer dizer, nunca definido ou rigorosamente estipulado. E tudo o que está fora do projecto enquanto disciplina, isto é, o indisciplinado e indeterminado, está contido nele enquanto componente possível a advir. É o que, de forma eficaz, resume a célebre frase de Mallarmé: «um lance de dados jamais abolirá o acaso».
Como sugere José Gil(3), de cujas palavras nos socorremos, sobre a noção filosófica de acaso, podemos aduzir «o lançamento de dados» como «um jogo divino, dificilmente pensável pelos humanos» já que consiste num lance em «todo o céu como espaço aberto e [n]o lançamento como única regra». Ora, como o autor complementa, «a ontologia é um lance de dados» que «não se propõe de maneira nenhuma abolir o acaso (o céu aberto).»(4)
Assim podemos dizer que trabalhar do lado do acaso, aceitando a sua poética mas também a violência que aquele introduz, exige uma disponibilidade que o acto criativo supõe. Pois o acto criativo é também esse desaprender da doxa e da imagem comum do pensamento, para o abrir a um outro modo de pensar que, paradoxalmente, não dispensa o que já sabe e os modus como sabe. Esta impossibilidade pode indicar que a arte – como a dimensão metafísica e até religiosa – sobrevive justamente no paradoxo em que é fundada: libertar-se daquilo que não pode. Uma crença que fala na incapacidade humana para fundir o finito ao infinito e, ainda assim, agir nessa vertigem ou ponto de inadequação.
Deste modo, por mais que possamos denotar a genealogia do rigor e da concepção na linguagem de Carlos Nogueira, o artista liga-se ao carácter acidental que a disciplina de projecto contém e que o desenho promove por ser uma forma primeira. Linhas, desenhos errantes, elementos estruturais, deixam de ocupar a sua função pré-estipulada para aqui determinar outro lugar. É o espaço do acidental, do imprevisto, enfim da arte, que irrompe por entre o determinável. Os seus desenhos e linhas tridimensionais – ferros casualmente encontrados e pelo mundo «modelados» ou vimes naturais moldados pelo artista como linhas de desenho – falam-nos de um espaço de «mordedura» que fica apreendido num momento. A arte, disso trata. Introduzir o non-sense, que outras áreas doutas não podem, por função, subverter. É então neste espaço de não-censura e cesura que o tempo começa a trabalhar por si provocando os seus estragos e, subterrâneo, faz emergir uma fenda(5) que atravessa todo o sujeito. Essa fenda sem fundo corresponde à imagem interdita do pensamento, ou seja, à impossibilidade de representação. Lugar vazio – objecto sem conteúdo – onde está salvaguardado o «absolutamente novo»(6). É nesse lugar que se manifesta uma inadequação do Eu perante o infinito onde aquele se vê projectado. O sujeito e a obra descartam-se então de todas as contingências epocais ou cronológicas e passam a tocar um tempo inteiro, lançando-se à vertigem que todo o pensamento sobre o infinito provoca.
Esta vertigem – prometida pela obra de Carlos Nogueira – consiste num lançamento para um vazio sem fundo onde se figura e apreende o real e a realidade, sabendo-os assim como verdade sem que se tenha necessidade de saber onde reside a verdade.
Na sua obra, mais do que uma linguagem formal relacionada com a arquitectura e que as suas esculturas confirmam, revela-se um modo de pensamento plenamente disponível. Trata-se do mais radical empreendimento para conceber o que, por natureza, não pode submeter-se a representações. Esta disciplina de projecto tem como ferramentas os mais suspeitos e mais (in)fiáveis barómetros: a carne e o corpo.
Dando carne e corpo a uma dimensão que não os tem, o artista pode fornecer ao homem as provas da sua factualidade e as obras apresentadas parecem querer esgotar carnivoramente todos os meios para lhe dar essas provas. Carlos Nogueira pode integrar-se nesta filiação de artistas carnívoros(7). Queremos dizer que todo o trabalho do espaço e das matérias, com o que nelas há de sensível mas também no que entre aquelas transita, é um trabalho da carne para chegar a dar corpo àquilo que está «antes». E nele, dominar as ferramentas (sejam estas as mais sofisticadas ou artesanais) é a via possível para penetrar uma matéria que, por sua natureza espacial, só pode ser devorada. O espaço é matéria e a sua penetração requer corpo. Nesse sentido, o espaço não pode ser apenas um receptor passivo de todas as investidas, mas uma matéria e ummedium que requer conhecimento e skill.
Isto indica também que a obra é a encarnação pontual de algo extra-temporal que atravessa todos os seres. Dar corpo significa então passar à possibilidade de conhecer: chegar a tocar, momentaneamente, aquilo que está «antes». Coincidir pontualmente com aquilo que é unívoco. Nele pode trazer-se à presença o mais efectivo, como o mais subtil. Não é estranho, portanto, que um dos elementos mais relevantes na obra de Carlos Nogueira seja precisamente a luz. Essa que é fugaz. Em várias esculturas Carlos Nogueira convoca a luz como matéria escultórica prima: é para ela que existem pedra, madeira, espelho, vidros. É por entre as fissuras destes elementos que ela se espalha para ocupar o espaço e atravessar o tempo inteiro. Tal é o caso da instalação que realizou na Capela de Sines, volumes sob os quais a luz se projecta para evaporar o peso físico do ferro [longe e brilha ou nem sombra nem vento], mas também em obras de madeira segmentada onde a luz interpõe transparência [casa com esquina. a céu aberto ou construção para lugar nenhum], ou ainda em obras compostas de superfícies reflectoras que capturam para si o ambiente circundante, flutuante, sempre a mudar [a parar a luz ou desenhos de construção com casa. e céu ou beyond the very edge of the earth].
Casas, ninhos, edifícios, abrigos… a arquitectura foi desde tempos imemoriais das actividades humanas que mais deliberadamente procurou exprimir a presença do sagrado no mundo dos homens. Quando referimos sagrado, remetemo-nos àquilo que no homem se transcende ou desloca, seja no sentido ascendente ou imanente. Mas a sensibilidade presente em relação ao sagrado já não requer alegorias ou personificações. Esta consciência não está acima nem abaixo, nem pode ser reduzida a qualquer coisa objectiva. Hoje, na arte, como na produção arquitectónica, ela expressa-se por uma «presença ausente» – uma espécie de marca deixada no espaço vazio. Depurar, privar de, chegar ao mais elementar ou ao que está «antes» é a forma de tocar o fundamento ontológico. Esse valor é também o de uma ordem ancestral ligada ao tempo e ao espaço – a mesma que está inscrita em toda a natureza.
O corpo significa então uma medida, elemento a partir do qual se faz a transição do espaço-do-corpo ao corpo-do-espaço. Essa operação compreende a percepção e conceptualização do espaço, ou seja, a sua representação.
Mas o espaço não é apenas o resultado de uma prática que consiste na aplicação de conceitos, nomes e imagens. Ele resulta de uma prática que envolve cegueira, desvios, acidentes, compreensões erróneas e todo o teste da experiência vivida. Esta introdução da experiência vivida é assinalada num dos primeiros projectos do artista (ou em acções de correio) com um singelo ramo de flores que largou em vários pontos da cidade, esperando a recolha fortuita e uma reacção, que poderia nunca chegar, por parte de quem o apanhasse. O projecto [gosto muito de ti] só conheceu o seu final quando, ao recolhê-lo, alguém anónimo reconheceu que era precisamente para si que o bouquet tinha sido perdido.
Repor o que de comum está inscrito neste lugar passa por nomear uma memória esquecida que não é senão esse traço de inscrição – ou talvez incisão – que a pele cicatriza, a mente não quer registar, o olho não detecta, mas a carne inscreve como a mais profunda das escritas. Não há perda, portanto, há um retrabalharcontinuum.
Por isso a sua obra é um ensaio sobre a construção de um lugar habitável, talvez extraído do tempo ou onde o tempo existe inteiro. Não um lugar qualquer, comum ou permanente mas um lugar diferenciável e, portanto, um lugar do Eu.
Lisboa, Novembro de 2008
(1) «The endlees museum would be endlessly under construction.» Ver: Beatriz Colomina, «The Endless Museum: Le Corbusier and Mies van der Rohe», in When Things Cast no Shadow – 5th Berlin Biennial for Contemporary Art, jrp/ringier, 2008, p. 182.
(2) Não necessariamente o que está «para além».
(3) Referenciando-se à obra Lógica do Sentido de Deleuze em José Gil, O Imperceptível Devir da Imanência – Sobre a Filosofia de Deleuze, Lisboa, Relógio D´Água, 2008, p. 53.
(4) José Gil, op. cit., p. 53-55.
(5) «Do principio ao fim o Eu é como que atravessado por uma fenda: é fendido pela forma pura e vazia do tempo». Citação da obra de Deleuze por José Gil. Op. cit., p. 72.
(6) Segundo José Gil, o espaço possível para a criação. Op. cit., p. 91. 7 Sara Antónia Matos, «Carnívoros – O Skill», in L+arte, n.º 50, rubrica Tema, Julho de 2008.