Pelo caminho um ramo de paisagens para Carlos Nogueira
por SALETTE TAVARES
A 13 de Julho de 1978 estava eu vestida de encarnado almoçando na luz branca e solar da minha casa quando me vieram chamar
meu filho tinha tido um grave acidente de viação. À mesa a Saudade e o Cherini.
Ele levou-me à louca pela cidade, àquela hora vazia, passando os sinais vermelhos. A serenidade que me impunha fez do meu olhar, ao entrar no Banco de Santa Maria, uma faca de gume afiado que paralisou o porteiro que não queria deixar-me entrar.
Da porta em frente saiu um médico, como se eu o mandasse chamar.
— Espere um momento, eu vou ver se é ele que entrou aqui há vinte minutos.
Era. Mandou-me para a sala de espera.
Aguardar notícias. A angústia castigava o ar. Os que viram contavam como o carro na longa fila de saída de Sacavém fora atingido por outro ultrapassando em sentido contrário o esmagara e como o molho de vidros e ferros e homem saltaram num bolo para fora da estrada parando finalmente contra o camião que seguia atrás do
meu filho.
Pedia-se sangue. Todos davam.
A união em dor é generosa e espanta.
A intervenção foi imediata. O motor esmagara-lhe o baço e o fémur esquerdo.
Estava em coma.
Os dias seguiram-se de visitas sem o poder ver. Um dia às dez da manhã o médico que o operara passou por nós dizendo que tinha uma informação muito grave. Uma das minhas filhas dizia que ele não voltaria. Eu sabia que voltava
e chegou com o seu mestre que eu tão bem conhecia!
Pegou-me nas mãos, voltou-as como se me fosse ler a sina:
— É preciso fazer esta operação. É o seu filho que vou ver?
Era.
Que resta a uma mulher católica mais convicta por razão que por fé e prova de devoção?
Pedir.
Fazer uma promessa a Santa Maria, ir a Fátima em peregrinação de dia 13.
Às onze da noite o meu amigo, mestre e director daquele serviço, telefonou-me.
Meu filho estava salvo embora ainda em coma.
Seguiram-se meses de Hospital e várias intervenções cirúrgicas e dois anos de muletas.
É esta história, infelizmente, a história banal de muitas mães que não só eu.
Na guerra e na estrada perdem-se vidas.
De tortura morreu Cristo diante dos olhos d’Ela.
Uns acreditam no milagre outros não. Nada obriga demonstrativamente.
Mas agora eu sou obrigada porque demonstrativa foi uma paisagem oferecida por um artista.
Tenho eu sempre a necessidade de um guarda-sol, uma sombrinha, como ainda há quem diga. Desde 1966. Não posso apanhar sol. O reumatismo, que me chegou em 1975 depois de uma segunda operação em Londres, quer sol, mas à sombra.
Fico mais queimada do que os que se expõem ao sol. Não sabendo que o meu guarda-sol com treze anos de uso estava um trapo salvo por umas varetas remendadas, a tradutora italiana do meu livro Lex Icon trouxe-me, em 1979, um guarda-sol amarelo brilhante — meu guarda-sol de enigma, onde o sol se vê em espelho.
Recebi o guarda-sol no Algarve e lá ficou sempre. Tenho um, chinês, que serve muito bem na minha casa de Lisboa; quem a conhece sabe que o tenho encostado ao canto da janela.
E a promessa?
Desde a chegada do guarda-sol, só agora na investigação o confirmei, eu procurei cumpri-la. Não tenho a fé dos que pelas estradas corajosamente continuam a grande tradição da Peregrinação
que nos legou Santiago e a poesia galaico-portuguesa: a nossa língua maravilhosamente diferenciada. Também tenho medo do relento e queria ir a Fátima
e ter uma cama.
Quatro vezes o tentei desesperadamente.
Quatro vezes não.
Valeu-me um amigo que me pôs em contacto com a filha de outro grande e inesquecível amigo. E à quinta vez lá fui. Este ano. Saí de Lisboa dia 12 de Outubro com um sol radiante e, como no nervosismo da saída do Algarve tinha posto o guarda-sol ao ombro como de costume, achei por bem levá-lo comigo.
Esse dia em Fátima foi apenas a noite: um pouco de velada para além do que supunha poder. Na manhã seguinte a chuva caía e como eu tenho medo da chuva pensei que não poderia ir. Mas acalmou e fui assistir à missa dos doentes e procissão do adeus.
Começou a chover fortemente e foi a estranheza de me sentir única com o meu guarda-sol na paisagem de guarda-chuvas, e a sensação de que uma poeira de humidade me envolvia como uma poeira de ouro, que me levou a escrever:
Despe-se o céu de ouro sobre o meu guarda-sol
e a contar
a um amigo que me propunha uma paisagem de trocar, a paisagem de Fátima com o meu guarda-sol amarelo no meio dos guarda-chuvas.
E ele respondeu-me:
— Lembra-se da paisagem que escolheu?
Já não sei se escolhi se não a paisagem que me lembrava tinha uma árvore. O amigo mandou-me a sua paisagem e o postal de onde a tirara para a montagem. Aí vai ela, é Fátima ainda antes da vinda do Papa, quando destruíram a belíssima humildade da Capelinha.
O guarda-sol amarelo estava ao centro. E o meu amigo suprimira Fátima, por as quatro vezes que o meu guarda-sol parece ter estado presente por mim, por meu desejo sincero, por meu temor e receio de não agradecer o que pedira.
Ó meu Guarda-Sol Amarelo!
teu dom da ubiquidade teve-me presente no ausente
cristalizou para além tempo
para além espaço
e ficaste retrato em mente
o que sempre tinhas feito
na oração que foste
Vou dedicar-te um poema de Antero de Quental
e o retrato da Virgem que apareceu nos Alpes e me foi dado pela professora de piano austríaca, quando eu tinha doze anos:
Comme stimulant d’application au piano!
Nov. de 1983