Um acontecimento irrepetível prestes a acontecer outra vez
por CATARINA ROSENDO
paisagens de (man)dar: durante umas férias de verão em Vila Nova de Milfontes, em 1980, e sem máquina fotográfica à mão, Carlos Nogueira comprou uns quantos postais repetidos às dezenas, se não às centenas. Cortou-os em tiras, destacando céus, mares, searas, arbustos, etc., que usou para fazer colagens com o mesmo formato que os postais originais, sobrepondo tiras iguais entre si em camadas sucessivas. Algumas das colagens foram enviadas a amigos, como recordação da sua estada na costa alentejana, tendo recebido em troca desenhos, poemas e assemblages que ainda hoje conserva. Guardou também fotocópias dos reversos dos postais enviados, com as respetivas inscrições e remetentes.
Alguns meses depois, o artista participou na exposição coletiva «A caixa», organizada pela Cooperativa Diferença, onde apresentou duas pequenas caixas (das quais só resta o projeto), uma delas aberta e contendo um postal-colagem, formado por quatro tiras horizontais de papel branco com rasgões e revestido a plástico transparente, com a inscrição «o meu / o seu» rasurada; e outra caixa fechada, ocultando no seu interior umapaisagem de (man)dar, com céus e nuvens, coberta com o mesmo plástico transparente e com a inscrição «o céu», a caneta.
Entretanto, no decurso do inverno de 1980-1981, Carlos Nogueira ocupou-se em transformar alguns dos postais de que não gostava em particular. Cobriu-os com pastel de óleo, mate e grumoso, negro e branco, seguindo mas deixando visíveis, por baixo, os veios dos recortes horizontais ou verticais das colagens iniciais. Depois agrupou-os aos pares, jogando com as oposições negro-horizontal/branco-vertical e negro-vertical/branco-horizontal. Mais uma vez, vários destes novos postais sem título (paisagens de [man]dar intervencionadas)foramoferecidos, tendo o artista conservado apenas dois pares.
Ainda em 1981, um dos postais foi incluído em conjunto de mesa e pintura a condizer e outros fragmentos de um discurso sobre o comum e o quotidiano (ou a primeira fruta com as primeiras chuvas), uma instalação/performance apresentada no Centro Nacional de Cultura. O trabalho colocava em cena dois acontecimentos distintos. Numa sala, formava-se um ambiente festivo em torno de uma mesa posta com cerejas e outros alimentos alusivos a esta fruta de final da primavera, à disposição dos visitantes. Noutra sala, contígua à primeira, apresentava-se uma mesa igualmente posta mas expectante, porque esvaziada de alimentos e de ocupantes. Pousada num prato, uma paisagem de (man)dar, feita com camadas de mares, com as palavras «mar / a mar» decalcadas e de novo revestida com plástico transparente, oferecia, no seu verso, um indício de narrativa através de uma inscrição manuscrita e rasurada da qual apenas eram legíveis as frases «saí. não volto».
Finalmente, em 1983, as paisagens de (man)dar constituíram uma exposição na Sociedade Nacional de Belas-Artes, desenhando, pelas paredes da sala, uma linha de horizonte. No reverso das paisagens, Carlos Nogueira anotou uma numeração sequencial, correspondente à ordem por que foram expostas, identificou-as como «provas de estado» de três tiragens cada, e, à medida que continuava a oferecer postais, escrevia em cada um deles o nome da pessoa presenteada.
Entretanto, o tempo passou, outros trabalhos foram sendo pensados e realizados e o registo das ofertas, assim como a lógica organizativa dos postais, acabou por se perder. Hoje, as cuidadosas anotações respeitantes à sua arrumação expositiva e ao seu estatuto técnico deixaram de fazer sentido e permanecem como vestígios de uma precisão cuja coerência se transformou naquilo que as paisagens de (man)dar são agora: um conjunto de colagens de formato postal, sem localização nem quantidade definidas, tecendo uma rede invisível que se espalha por um número incerto de amigos de Carlos Nogueira, pelo ateliê do artista onde algumas ainda se conservam, pelas (poucas) exposições em que foram mostradas, pelos trabalhos em que foram integradas e pelas obras que começaram por ser paisagens de (man)dar mas que passaram a ser outra coisa qualquer.
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A paisagem, a repetição, a construção, o gesto da oferta, a ação performativa, os materiais comuns, a escrita, o desenho, a escultura, a acumulação, a transformação, a apropriação e a depuração são vários dos aspetos e procedimentos que ajudam a definir a obra de Carlos Nogueira. Realizada ao longo de mais de quarenta anos, por ela perpassa uma característica fundamental que só a perspetiva possibilitada pela organização de uma mostra de caráter antológico (como a que agora se apresenta) permitiu desvendar: a introdução de diversos mecanismos de elaboração que dificultam intencionalmente a aferição dos limites físicos e temporais das obras. Há elementos que transitam de uns trabalhos para outros, que são alterados para melhor se adaptarem a uma nova obra, que mudam de título ao ritmo das transformações físicas que lhes trazem novos atributos, que desaparecem devido à sua fragilidade ou que são abandonados na rua ou oferecidos sem deixar rasto, comprometendo a sua posterior legibilidade ou mesmo a sua reconstituição integral. E há outros elementos (por vezes os mesmos) que resistem a datações precisas não só porque nunca chegaram a ser datados e porque a recorrência de processos e de ideias escapa à imposição de uma cronologia (mesmo que aproximada), mas também porque, mesmo quando o foram, mudaram de forma, de significado e de estatuto ao longo dos anos. Boa parte da obra de Carlos Nogueira vive, por isso, sob o signo da dispersão e da desaparição.
A estes aspetos há que somar duas considerações que não são tão exteriores à própria obra quanto à primeira vista podem parecer. Em primeiro lugar, os ritmos expositivos que têm proporcionado a visibilidade dos seus trabalhos: excetuando os casos em que algumas performances, esculturas ou desenhos repetiram a sua aparição no espaço público (quase sempre em contexto de mostras coletivas), o mais comum é que os seus trabalhos sejam apresentados apenas uma vez, em exposição individual, recolhendo-se depois ao ateliê onde ficam guardados ou à espera de novas intervenções. O critério da visibilidade nem sequer é o mais adequado para o conhecimento ou apreciação de alguns trabalhos, como é o caso de certas ações performativas realizadas em contextos anónimos, exteriores à instituição artística, e das quais subsiste apenas o desenho-projeto, uma espécie de memória descritiva ou de estudo prévio impossível de comparar com o resultado final devido à ausência de qualquer registo documental em filme, fotografia ou mesmo texto (como é o caso de se eu pudesse dava-te um piano . ação por correio, de 1980). Em segundo lugar, Carlos Nogueira tem como prática recorrente a elaboração de um único trabalho para uma determinada exposição, quase sempre desdobrado em várias partes, entre desenhos, esculturas e ações (e, num certo sentido, no próprio catálogo que, desde sempre, é por si concebido), e cujos títulos se confundem com o da própria exposição. No seu conjunto, cada exposição funciona como uma unidade orgânica, de estreita dependência entre as partes que a constituem e o espaço que as acolhe (e que delas faz parte). A relevância das lógicas através das quais se instalam, organizam e orientam é tão mais ampliada quanto únicas porque nunca mais ensaiada noutros lugares e noutros tempos. É como se o ato de repetir que assiste à produção de boa parte da obra de Carlos Nogueira não encontrasse paralelo na visibilidade da mesma, dado que ela acaba por assumir a qualidade de um acontecimento irrepetível. Junte-se a estas ideias a constatação de que a presença do seu trabalho no panorama artístico tem sido conduzida de forma discreta (não só pelo cuidado que o próprio artista põe na escolha dos lugares onde expõe como pela sua ausência em grande parte das mostras coletivas mais relevantes) e que a fortuna crítica das suas exposições nem sempre esteve atenta ou à altura do que se mostrava, e temos um corpo de trabalho que, para além do permanente estado de dispersão e desaparição das próprias obras, tem ainda colhido uma boa dose de invisibilidade institucional.
Todas estas questões estiveram presentes e foram determinando, passo a passo, os modos de organização da presente mostra. Trata-se da primeira exposição antológica no percurso de Carlos Nogueira, facto por si só significativo, e que se torna um desafio ainda maior por conduzir, por um lado, ao rompimento com a prática de mostrar uma obra «uma vez, de cada vez»; por outro, à necessidade de proteger a integridade física de trabalhos passados que, dentro da mesma linha de argumentos, seriam irremediavelmente transformados de modo a justificarem-se na nova circunstância expositiva; e, por último, à presença de um olhar exterior (o nosso) sobre uma obra cuja desatenção mediática lhe permitiu ir-se construindo em plena liberdade mas também em relativo isolamento. Na realidade, se esta exposição antológica surge um pouco tarde no percurso do artista, a obra sugere, em si mesma e por paradoxal que seja, diversos motivos para que uma perspetiva ampla do seu trabalho seja, de certo modo, um desvirtuamento das suas condições de produção. Assim, ao mesmo tempo que procurámos introduzir a «clareza» que considerámos necessária para tornar o percurso do artista mais nítido, tentámos também acompanhar o desejo de «claridade» que orienta, desde sempre, o seu trabalho – até porque nenhuma reflexão sobre uma obra se pode afastar tanto dela ao ponto de a desfigurar.
Neste sentido, e em face de uma prática artística que gira em torno de um núcleo coeso de procedimentos e ideias que se vão fundindo, por sucessivos aprofundamentos e transformações, com os lugares onde se mostra e com o próprio corpo de trabalho que vai ficando para trás, a exposição desdobrou-se em várias partes: i)performance, ii) escultura, iii) estudos de riscado para camisa sem bolsos; iv) paisagens de (man)dar; v) desenhos-projetos; vi) diapositivos e fotografias; vii) «desenhos» e outros objetos.
A performance e a escultura assinalam os polos entre os quais se desenvolve a obra de Carlos Nogueira. A prática inicial da performance prolonga-se até inícios dos anos 1980 e é marcada, sobretudo no final da década precedente, pela realização de instalações/performances, ações de rua e envios por correio. A escultura começa a surgir de forma mais significativa a partir de 1992 (com entre duas águas, apresentado em Évora), e mantém-se presente até hoje, quase sempre acompanhada por aquilo a que o artista chama «desenhos»: pequenos objetos tridimensionais, com estrutura em ferro e madeira, que se penduram na parede para serem vistos ao nível do olhar. Os desenhos da série estudos de riscado para camisa sem bolsos (começados em 1979 e com data incerta de conclusão) e as colagens paisagens de (man)dar (1980-1981) revelam exemplarmente a ligação entre duas formas de trabalhar na aparência tão díspares como o são as performances dos primeiros tempos e as esculturas mais recentes. Ambos manifestam muitas das pesquisas (em redor dos materiais, das técnicas e do universo concetual) que, partindo das ações performativas, encontraram nos gestos construtivos presentes nas esculturas e nos «desenhos» motivos para se continuarem a desenvolver.
Os núcleos de desenhos-projetos e de diapositivos e fotografias apresentam um conjunto de materiais na sua grande maioria inédito. Têm cumprido a função de auxiliares dos processos de trabalho de Carlos Nogueira, fazendo por vezes parte de obras concretas e, nessa qualidade, um ou outro desenho e fotografia têm surgido reproduzidos nos catálogos das suas exposições individuais. Revelam pesquisas que ultrapassam em muito a mera anotação de ideias e formas e têm a particularidade, no caso dos desenhos, de convocar uma grande variedade de meios e de cruzar a escrita com a imagem e, no caso dos diapositivos e fotografias a preto e branco, de demonstrar como a captura de vistas do campo (menos que paisagens) está longe da procura do enquadramento correto ou das condições perfeitas de luz.
Finalmente, o núcleo de «desenhos» e outros objetos revela uma linha de pesquisa assente nos formatos pequenos (que a prática de ateliê sempre proporciona a este artista), nos objetos de tipologias variadas, planeados para serem instalados na parede, e nos vários «desenhos» que são independentes do trabalho escultórico. É talvez no encadeamento destas obras, com a sua cronologia impossível, que melhor se compreendem as continuidades e os desvios com que Carlos Nogueira tem vindo a questionar noções como as de paisagem, construção, casa ou habitar. É também nas várias declinações da ideia de desenho – desmultiplicado em séries (mais do que valendo pela sua individualidade expressiva) e assente nos mais variados suportes e materiais, dos mais banais aos mais nobres – que melhor se revelam os sentidos da obra de Carlos Nogueira.
Daqui resulta, também, o motivo pelo qual não se introduziram limites temporais nas obras a selecionar para a presente exposição, sob pena de se estabelecerem barreiras artificiais num percurso que, em rigor, não as tem. Para lá do momento em que a performance foi preferencial no seu trabalho e em que a direção escultórica se tornou mais explícita, o desenho manteve-se sempre constante.
É esta permanência nos modos de refletir e de questionar a prática artística que explica a fase intermédia em que o abandono das ações performativas só muito lentamente e através da mediação do desenho, da pintura e de pequenos objetos dá lugar à vocação construtiva da sua abordagem à escultura. Talvez não seja por acaso que este hiato corresponde, em termos gerais, à década de 1980, e que a ausência de uma produção tão marcante como as dos anos precedentes e subsequentes no seu trabalho se possa explicar por uma certa dissonância com a face mais visível do espírito da época. De facto, o balanço entre o fascínio pelas pequenas perceções e a disciplina do distanciamento analítico, desde sempre presente na obra do artista, diverge da impulsividade e dos gestos largos que caracterizaram grande parte das expressões que se orientaram para os suportes tradicionais da pintura e da escultura. Do mesmo modo, dificilmente se poderia encaixar no arsenal de citações, alegorias e derrisões da «novidade da tradição» o seu interesse pelo caráter perene das coisas (dos objetos e dos espaços) ou mesmo a discreta qualidade vibrante que se deteta nas suas ações artísticas.
Não que um dos momentos de maior visibilidade da obra de Carlos Nogueira não tenha ocorrido justamente nesta década, através da sua participação na representação portuguesa à Bienal de Veneza (em 1986, com comissariado de José Luís Porfírio), nem que o seu trabalho destes anos não tenha operado uma inflexão para a pintura, à semelhança da tendência geral que, nesses anos, fazia abandonar práticas concetuais e performativas mais características da década anterior. No seu caso, porém, a pintura retém pouco dos procedimentos e da iconografia da época e mantém-se fiel a um discurso plástico que valoriza a intuição e enfatiza (por vezes ao limite) o trabalho lento de uma observação que se desdobra, por um lado, na recuperação de objetos abandonados e numa recolha fotográfica de assuntos mais ou menos indiferenciados (arrabaldes semiurbanizados, construções em ruínas, restos da presença humana); por outro lado, na exploração das mínimas variações no comportamento dos materiais que usa (o efeito de uma dobra numa folha de papel, as marcas da degradação de um objeto encontrado); e, finalmente, nos modos de dar forma visível e imaginante ao percecionado.
Estes são anos que prolongam procedimentos já antes explorados, como o desenvolvimento em partes ou séries (quase sempre dois ou mais elementos por trabalho, como acontecia com os estudos de riscado), a passagem do tempo (trabalhada antes nos anoiteceres sobre o mar ou o rio em para um levantamento da paisagem, de 1975) ou o confronto de opostos (os já referidos sem título, 1980-1981, ou mar e terra, de 1970-1975). A somar a estas permanências, Carlos Nogueira imprime às suas pesquisas uma depuração que conduz ao gradual abandono de dispositivos de enunciação mais diretamente vinculados a estruturas paranarrativas ou figurais (as nuvens são como as nuvens / do céu, 1983-1984) e faz um uso cada vez mais intenso de uma prática demorada de transformação das perceções iniciais em ideias e conceitos que, no final, se retêm na obra apenas através das suas condições técnicas de execução (desenho de céu, sem data; desenho de vento, 1990). Durante estes anos, a sua paleta cromática estabiliza-se em tons frios (azuis, cinzentos, negros e brancos), os empastamentos de tinta aparecem na justa necessidade de dar corpo a algo (como as nuvens de o céu [I-VI], 1983) e a pintura é decididamente objetual (paisagem, 1983; mar [fragmento], 1985). O gosto pelo manuseio dos materiais, que leva Carlos Nogueira a explorar e a inventar técnicas de pintura, tem sempre presente o facto de que, para si, nem a imagem se resolve no plano nem a pintura é uma questão de representação. Trata-se antes da criação de lugares: lugares por onde o vento passa, batidos pelo mar ou atravessados pelas nuvens e onde o artista vai introduzindo, aos poucos, modos de legibilidade que os investem de presença humana. Noções complementares mas autónomas, como dentro/fora, vertical/horizontal, longe/perto, fundo/superfície, visível/invisível, escuro/brilhante, pesado/leve, permanência/efémero ou dia/noite, surgem como valores de aferição de um habitar os espaços que a escultura virá a materializar em anos posteriores, revelando como também esta não se reduz à modelação de formas mas antes implica o ato de tornar visíveis relações de caráter antropológico e tectónico.
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Vejamos então, com mais detalhe, alguns aspetos que atravessam, de forma regular, o trabalho de Carlos Nogueira e que atestam a constância do seu universo plástico e concetual, não obstante as diversas formas (físicas ou imateriais) que tem assumido ao longo do tempo. Por exemplo, o gesto de oferta, indissociável de uma ação performativa que, nos primeiros anos, o artista explora, por vezes com a presença ativa do seu corpo e uma relação direta com o público (os dias cinzentos / lápis de pintar os dias cinzentos, 1979; a Camões e a ti, 1980), outras vezes preparando formas de interação entre a obra e os espectadores/participantes (99 pombas de brincar para outros tantos usadores, 1973; conjunto de mesa e pintura...), outras ainda dispensando o espectador e o contexto expositivo, enviando pelo correio e distribuindo pelo espaço público, de forma anónima e a destinatários desconhecidos, objetos por si elaborados (se eu pudesse dava-te um piano, 1980; gosto muito de ti . ação de rua, 1980).
Comum a todas estas performances e ações é uma intenção em que o fazer (respetivamente, etiquetar lápis de cor, elaborar flores de papel, intervir plasticamente em brinquedos populares, pôr a mesa, construir flautas de bambu e realizar percursos pela cidade) culmina numa oferta que coloca em circulação pequenos objetos e alimentos, símbolos de uma deliberada desapropriação física e autoral da noção de obra de arte. Prova disso é o paradeiro desconhecido da esmagadora maioria dos objetos oferecidos, enviados ou abandonados, o facto de que boa parte dos destinatários são estranhos a Carlos Nogueira e a ausência, no caso das ações por correio e de rua, de quaisquer indicações, nos materiais recebidos ou encontrados, respeitantes ao contexto artístico da sua produção. Os próprios materiais que assistem a estas performances são de produção e uso correntes, por vezes pertencentes à cultura tradicional portuguesa: lápis de cor escolares, flores feitas com guardanapos de cafetaria, brinquedos de madeira comprados em feiras, loiça, etc. Os objetos são escolhidos entre aqueles que pertencem à vida do dia a dia e reforçam a diluição de autoria e de reificação, deixando o campo livre para que o seu manuseio, consumo e utilização lúdica possam ser experimentados como a ativação de um acontecimento que, longe de pertencer à esfera do excecional, se envolve diretamente com os gestos e as ações do quotidiano de cada um. Os desenhos e pinturas em redor de elementos da natureza mais característicos dos anos de 1980, ou as esculturas que começa a realizar no início da década de 1990, só são compreensíveis à luz da convocação deste tipo de perceção que envolve a ativação do comum enquanto acontecimento. Entre as performancesiniciais, a prática do desenho ou da pintura e as construções escultóricas, Carlos Nogueira introduz gradualmente no seu trabalho uma depuração, quer de meios quer de elementos imagéticos ou narrativos, que faz a relação obra-espectador acontecer de modo mais subtil e que faz depender em boa parte esta relação, de uma forma mais sensível, do espaço em volta.
Isto leva-nos a um outro aspeto: a presença da paisagem como ambiente exemplar de uma realidade aferida com o corpo, explicitada numa dimensão háptica que encontra no movimento e no constante fluir o seu interesse maior. O vento, as nuvens e o mar são claros na sua vocação para uma permanente transitoriedade e mudança que preserva, no entanto, o seu caráter essencial, como acontece em trabalhos como para um levantamento da paisagem: os dias cinzentos (1977), paisagem com vento (1983) ou o céu (I-VI) (1983). Elementos como os referidos, e ainda vimes, árvores, céus e horizontes fazem parte das imagens naturais exploradas na obra de Carlos Nogueira. Ainda hoje, passados vinte anos do abandono das referências (mais ou menos) figurativas desses elementos e da sua substituição pela escultura sem referente imediato, eles mantêm-se presentes, seja mediados pela escolha de materiais que os incluem na obra por reflexão (a parar a luz, 2002), seja pela sua presença na obra em regime de alteridade, quando colocadas em ambientes de jardim (o mar, a pedra e outros labirintos, 1996, Brasília), seja ainda na atenção minuciosa às condições prévias do lugar onde são instaladas (beyond the very edge of the earth, 1999, Economist Plaza, Londres).
A repetição e a sobreposição formam, em conjunto, um outro procedimento caro à produção do artista. Aspaisagens de (man)dar, como já vimos, deixam-no bem explícito, mas também, por exemplo, para um levantamento da paisagem: os dias cinzentos(1977), o conjunto de desenhos que acompanha a instalação/performance homónima, com as suas linhas paralelas a lápis e a tinta sobre fundos cinzento-azulados, ou os estudos de riscado para camisa sem bolsos (1979-). Mais recentemente, a repetição dos materiais e a sua acumulação metódica têm marcado também as suas esculturas. No caso dos desenhos mencionados, é o manuseio da pequena escala, com o que está à mão e com que Carlos Nogueira se ocupa sozinho. Na escultura é o trabalho com a escala humana e a convocação de saberes especializados para a execução da obra. Em ambas as situações se parte de um gesto que é centenas (milhares) de vezes repetido nas sucessivas camadas que formarão o todo. Na escultura, os materiais usados são os de produção industrial (ferro, pedra, vidro) e a dimensão construtiva que fica explícita não o é por acaso: ela deixa percetível a duração do fazer, expõe sem ilusão de qualquer espécie o processo e os meios usados, e não recorre a menos do que às condições técnicas exigíveis para garantir que as paredes das suas esculturas não se desviam meio centímetro do planeado nem empenam com o prolongamento da sua instalação in situ. É como se a aparência construtiva das esculturas de Carlos Nogueira só tivesse direito a existir porque resulta do próprio rigor do fazer.
Os desenhos de os dias cinzentos e os estudos de riscado partilham uma outra característica com as esculturas, resultante ainda da repetição e da sobreposição. No caso dos primeiros, elas apontam para pequenas variações que, em os dias cinzentos, são obtidas pelos diferentes tons usados no fundo dos desenhos e por acumulações desordenadas de riscas, cuja semelhança com as rasuras da escrita convocam a ideia de um texto indecifrável. No caso dos segundos, as várias combinações de grafite, lápis de cor e canetas usadas nos sucessivos riscados não só introduzem diferenças (quase impercetíveis) nos vários desenhos, como as estabelecem como ensaios persistentes que fazem ressair a componente de «estudo» presente no título. No que diz respeito às esculturas, é o próprio artista que, durante o processo de construção (e mesmo já depois de terminado), introduz pequenas variações nos mosaicos de produção industrial que usa, desbastando-os aqui e ali com golpes secos de cinzel. A repetição dá, então, lugar a diferenças ténues mas visíveis, e são estes pequenos detalhes que interessam ao artista. Como que para lembrar que, apesar de recorrerem a materiais de produção industrial, os seus trabalhos são realizados manualmente e os seus gestos estão intimamente implicados neles.
Não é só aqui que verificamos a presença da repetição. Ela percorre, acompanhada da sobreposição ou da sucessão, grande parte da obra de Carlos Nogueira, desde as flores de papel de a Camões e a tiao «rio» deentre duas águas (1992) e até à mais recente construção(2008). Uma das presenças mais subtis desta repetição por camadas está nos inúmeros «desenhos» que acompanham as esculturas e se elaboram, nos seus próprios meios, em redor de aspetos formais e concetuais nelas implícitos, fazendo-os variar e divergir a partir dos mesmos gestos ligados à repetição e à acumulação. Sobre uma estrutura retangular em ferro e madeira previamente preparada, o artista vai depositando sucessivas camadas de tinta acrílica, aguardando que a anterior seque para aplicar uma nova. São trabalhos demorados, nos quais se vão introduzindo, para além da tinta, outros materiais como pedacinhos de papel rasgado, granulados, pó de grafite, misturas com óleos e vernizes, cores que ficam submersas debaixo de outras cores, etc. É fácil elaborar uma imagem mental dos diversos estratos que compõem cada um destes «desenhos», até porque há sempre uma rugosidade que as camadas finais não conseguiram aplanar, uma leve coloração que as últimas passagens com tinta de cor diferente não cobriram totalmente, ou as arestas que, com atenção, revelam muitas das fases por que passou cada trabalho. É um processo desta natureza que está implícito nas modificações que atravessam quer aspaisagens de (man)dar, quer os estudos de riscado para camisas sem bolsos, onde sucessivas intervenções plásticas e a montagem do papel em estruturas semelhantes às dos «desenhos», ocorridas no decurso de um tempo dilatado, acabaram por transformá-los nos objetos de parede a que Carlos Nogueira chama «desenhos».
Um último aspeto que gostaríamos de salientar, sem esgotar todos os que a obra do artista sugere, é a importância da palavra e a função que a escrita possui, na sua dupla valência significativa e significante. Espalhados por boa parte da obra em papel, diversos enunciados textuais cumprem várias propósitos: descrevem, com maior ou menor detalhe, performances, ações de rua e de correio, algumas das quais hoje só conhecemos pelo projeto (e refira-se como gosto muito de ti se liga a um determinado acontecimento, real, do ciclo anual das estações, o equinócio da primavera); inscrevem-se ao lado de desenhos e recortes através de frases interrompidas e rasuradas de modo a explorar a ilegibilidade enquanto facto irredutível das imagens que as acompanham (o corpo, de finais dos anos 1970); surgem também nas folhas de projeto como procura dos sentidos e das propriedades (de lugares, objetos ou gestos) que ao artista interessa investigar em determinada obra; e, no limite, transformam--se em poemas que fazem parte de obras como a noite e branco (2000) e a ver(2002).
Para além destas funções da escrita inerentes ao processo de trabalho do artista, há uma plástica implícita no recurso à palavra e ao enunciado textual: eles aparecem ora manuscritos (com a sua caligrafia ou a de outrem), ora datilografados, e inscrevem-se nos mais variados suportes, como postais antigos, fotocópias de páginas de livros e fichas de leitura, colados ou agrafados sobre a folha de papel e sujeitos a rasuras, recortes ou tinta corretora que obliteram ou ocultam as palavras, ou duplicados através da fotocópia e depois sujeitos a pequenas modificações. Todos estes elementos e processos distribuem-se na folha de papel em estreita dependência gráfica entre si e entre as imagens que os acompanham. A própria linguagem é matéria moldável, porque daí resultam termos inventados (os «usadores» das 99 pombas de brincar...), a abertura das palavras a novos sentidos («com a luz que ainda havia fez-lhe chão», construção para lugar nenhum, 2001-2003), a sobreposição de vários opostos numa expressão só (a noite e branco, 2000), ou a desregulação dos acordos sintáticos das palavras (longe e brilha, 2002). Ao corromper a gramática e ao criar novos usos e formas de dizer e de nomear as coisas e as perceções, o artista procura, mais uma vez, resgatar o comum do âmbito banal e indiferente para que é constantemente arrastado pelo uso quotidiano.
As frases curtas, os pequenos textos e os poemas que surgem nas colagens, nos desenhos-projetos das ações e das performances e nos esboços de ideias para esculturas são significativas do poder da palavra no universo plástico de Carlos Nogueira, por um lado, e também de uma dimensão narrativa, por outro, que desde sempre participou da constituição das suas obras e que, aos poucos, se tornou mais rarefeita ou saiu para fora da obra, passando a ocupar lugares periféricos da mesma, como os referidos esboços em relação às esculturas. O âmbito de intervenção de Carlos Nogueira não é, nem nunca foi, o da pura visualidade, mesmo que o apuro com que busca a forma certa para as suas obras e a relação destas com os lugares possa fazer parecer o contrário. Os múltiplos sentidos das palavras interferem e fazem parte, com frequência, do seu trabalho, e são outra das vias pelas quais se compreende de que modo a crescente abstração das suas obras significa uma ancoragem cada vez mais profunda aos modos de decifração da realidade.