A céu aberto
por MICHAEL ARCHER
Há muito para ver – grandes esculturas de exterior, grandes estruturas de interior, instalações, pequenas peças de interior, trabalhos em cartão, papel e contraplacado, esboços, projetos, livros e pequenos objetos, documentação relativa a performances e a trabalhos de arquitetura. E depois de ter estudado e analisado tudo isto, chamou-me a atenção um desenho. Nos seus elementos essenciais, apenas três linhas. As linhas seguem aproximadamente na mesma direção: movem-se ao longo do papel, de um para o outro lado, mais do que de cima para baixo. Mostram, assim, a realidade física do que significa ser horizontal, do que significa estar deitado. Inclinam-se e dobram-se como um corpo se inclina e se dobra, porque elas são, de facto, um corpo ou, para ser mais preciso, dois corpos. Uma deita-se em cima da outra, como os corpos. As linhas são os corpos, e são também a zona de contacto entre um corpo e o outro, e entre os corpos e aquilo que os envolve e contém. São o contacto entre o chão e as costas, entre torso e torso, e entre costas e céu. A imagem transporta consigo a verdade daquilo que Heidegger, no ensaio «Construir, habitar, pensar», quando se refere à condição humana, define como o estado quadripartido do Ser na Terra, entre os homens, perante os deuses e sob o céu(1). Ao delinear as fronteiras entre chão e corpo, corpo e céu, as linhas do desenho de Carlos Nogueira definem a nossa condição de seres separados, e desse modo revelam o impulso duplo e conflitual, inevitável, que nos permitiria manter um sentido de inteireza pessoal e, simultaneamente, ver a nossa individualidade descobrir com os outros uma raiz comum. A distinção, como notou Roger Caillois, é a questão fundamental, quer seja entre o real e o imaginário, o acordar e o adormecer, a ignorância e o conhecimento, ou entre «um ser vivo e aquilo que o envolve»(2). Carlos Nogueira dá a ver a contradição inevitável, inerente ao desejo de em simultâneo afirmar e anular a autonomia individual, de um modo tão conciso quanto o equilíbrio e a concisão gráfica do seu desenho: «Eu vivo numa certa solidão – diz –, mas preferia não viver assim».
Comecemos, pois, pelo desejo de ligar e com a promessa de um simples encontro. Coloquemos uma coisa ao lado de outra. Repita--se o gesto e volte a repetir-se. Coisas colocadas ao lado umas das outras permanecem ao lado umas das outras. Da sua justaposição nasce uma superfície. Não será uma relação, ainda não o é, mas contém em si todas as possibilidades de vir a ser, um espaço a ser ocupado fisicamente ou habitado através da imaginação.
É o espaço da obra, uma parte da obra, e a possibilidade da obra. Pensemos nas placas de aglomerado de madeira e cimento que cobrem a superfície da instalação nem sombra nem vento, e ainda na extensão de mosaico hidráulico que, em estruturas construídas em sucessivas camadas, constituem a base de como uma imensa coluna de ar e casa quadrada com chão branco a partir de dentro. Nestes últimos exemplos, mais mosaicos do mesmo tipo erguem-
-se em várias camadas, de modo a formar espaços fechados com abertura. Separados uns dos outros por barras de metal de secção quadrada, essas camadas assentam sobre as de baixo ao mesmo tempo que se elevam acima delas. Nova colocação. Colocar uma coisa sobre a outra. Estaremos no ponto em que se estabelece uma relação, uma ligação, através de movimentos simultâneos de descida e subida, fusão e emersão, dos elementos da escultura?
Modo ativo: colocar uma coisa em cima de outra. Modo passivo: uma coisa está colocada em cima de outra. Uma coisa permanece em cima de outra. Qual é, neste encontro, o lugar do impulso, da intenção e do desejo? Poderá o desejo de fazer uma conexão, instituir uma ligação ou estabelecer uma relação entre coisas, ou entre pessoas e coisas, ou entre pessoas e pessoas, afirmar-se sem se tornar ao mesmo tempo uma imposição? Poderá uma ligação realizar-se completamente, sem ao mesmo tempo implicar uma exigência? No verão de 1970 a revista de arte Studio International publicou um livro que funcionava quer como um número da revista, quer como uma exposição. Destacando várias modalidades de uma prática, no âmbito do que então era genericamente referido e descrito como arte conceptual, a revista atribuiu um certo número de páginas a seis críticos diferentes, um espaço que permitiria a cada um organizar uma pequena mostra. Uma desses seis, Lucy Lippard, organizou uma série de nomes dispostos em círculo, em que um primeiro artista da série enviava ao seguinte um conjunto de instruções para a realização de uma obra que, quando concluída, serviria como uma espécie de inspiração para um conjunto de instruções destinadas ao seguinte, e assim por diante, até o último remeter de novo para o primeiro. O papel de Lawrence Weiner consistiu em dar instruções a On Kawara; no entanto, quando chegou a sua vez, tudo o que conseguiu enviar foi o seguinte:
Meu caro On Kawara,
Peço desculpa, mas a única coisa que me permito impor-lhe são os meus votos de que tenha um bom dia.
Com amizade,
Lawrence Weiner (3)
À primeira vista, isto poderia ser entendido como um abdicar da responsabilidade, uma tática para evitar o confronto com o que, em determinadas circunstâncias, poderíamos considerar uma ideia. Mas penso que uma interpretação como esta seria redutora e inadequada. Inadequada porque há um sentido positivo no convite de Weiner. Ao recusar impor, preferindo não avançar com condições e expectativas, para além das oferecidas pelo mundo, pelas pessoas e pelas coisas que encontramos no caminho das nossas vidas, Weiner reconhece o efeito limitativo de qualquer ação que, antes de tempo, pretenda fixar as coisas e tomar decisões a propósito delas. Penso muitas vezes na abertura e na generosidade do gesto de Weiner, na empatia desse gesto, ao contemplar a obra de Carlos Nogueira. Ter um bom dia não é uma escolha fácil; é quase sempre uma tarefa difícil para quase todos nós. Há nas coisas um lado obscuro que não pode ser eliminado. É mais do que suficiente para qualquer um dar-nos a liberdade de reconhecer a presença dessa obscuridade, de a saborear, de controlar o seu peso. Carlos Nogueira sabe isso. Constrói uma caixa, um guarda-escuro. É uma caixa comprida e retangular, pintada de branco por fora. Exposta num suporte metálico que a mantém afastada da parede, a tampa mantida aberta para revelar um interior escuro. Pandora aceitaria uma caixa como esta e as possibilidades que ela contém. Intenso mas não sem remissão, o interior é realmente escuro, mas há também vermelho e azul. Nas performances, socialmente discursivas e dialogantes, realizadas no início da sua carreira, Carlos Nogueira oferecer-nos-ia a opção de nos envolvermos ativamente, e de remeter para nós a possibilidade de suavizar a tristeza. Conseguiu isto apresentando-nos um conjunto de lápis, cada um com uma etiqueta onde se indicava que podia ser levado e usado para acrescentar cor ao que, de outro modo, poderia ser considerado um dia cinzento (lápis de pintar os dias cinzentos). E tal como a condição de ser cinzento é mutável, sendo para uns talvez meteorológica, para outros económica, psicológica, emocional ou política, também os lápis e as suas cores são, neste contexto, simultaneamente e não apenas instrumentos, mas também material, agentes atuantes, figuras na paisagem do espaço da exposição, e fator de coesão social.
Estabelecer uma ligação, estabelecer uma outra, assistir ao formar de uma comunidade. Nada de complicado. Um lápis poderá fazer isso; ou talvez uma pomba de brincar, as rodas ligadas às asas por pequenos fios de arame, fazendo-as bater quando o brinquedo começa a ser empurrado pelo chão fora. A pomba está no chão, mas voa, portanto também está no ar. São muitas as pombas, o que significa que tal pode ser feito por muitos de nós, em simultâneo, desenhando caminhos de linhas cruzadas à volta do chão da galeria, livremente ou estabelecendo possíveis acordos e combinações.
E mais, os guiadores são hastes relativamente curtas. Tendo o tamanho certo para as crianças, não são suficientemente grandes para que um adulto os utilize sem ter de se curvar e descer ao nível delas. Aqui, não há lugar para a falta de engenho; não se pode fingir falta de familiaridade com o mundo nem mostrar muito saber; participar exige no mínimo que olhemos as coisas de um ponto de vista menos comum, e estimula-nos a imaginar que o conhecimento das coisas dispensa uma curiosidade inconsistente. Permanecer aberto ao que está fora de nós, como ao vestir a peça de roupa que Carlos Nogueira propôs nos seus estudos de riscado para camisa sem bolsos. Usar uma camisa dessas significa que nada pode ser escondido ou guardado e adiado para uso futuro. Tudo o que é necessário tem de estar na mão. Quando temos um lápis não lhe podemos dar descanso; tem de estar disponível. Ao usar um lápis para fazer um desenho ou tomar uma nota, a nota não pode ser dobrada, guardada e esquecida, o desenho não pode ser posto de lado.
O lápis, a nota, o desenho devem, necessariamente, permanecer como atores dinâmicos nos grandes dramas da vida quotidiana. Se temos um lápis, façamos um desenho; se a nota for para lembrar, mantê-la na mão assegura que não há hipótese de a esquecermos ou de não recordar o que ela diz. Não teorizar nem interpretar. Agir.
A cada momento, vemos revelar-se na obra de Carlos Nogueira o que pode ser descrito como uma não propensão para afirmar uma forma final. Quer seja na obra propriamente dita, no modo como é realizada, quer na maneira como é tratada posteriormente, deparamos com essa não propensão. As coisas não ficam definitivamente acabadas e assinadas como trabalho do artista, senão quando chega o momento de as expor. E como Carlos Nogueira escolhe exatamente esse momento para escrever o seu nome no canto inferior direito, ou no lado inverso, ou em qualquer outro lugar, a sua assinatura age menos como marca de uma conclusão, do que como permissão para a entrada da obra no novo contexto e ambiente da exposição; não um fim, mas um começo. Não fechando nem acabando nada, a assinatura provoca uma alteração, de um estado de falta de ambiguidade para um outro. Onde ele fala mesmo em determinar um fim é no escacilhar dos bordos dos mosaicos hidráulicos em obras onde são utilizados. No início, um em cada três é aparado, mas invariavelmente quebra-se a regularidade dos bordos de outros tantos, num processo de acabamento que, de modo perverso, consiste em devolver uma coisa à condição de incompleta.
À luz desta tendência para retirar o caráter de coisa acabada, quando Carlos Nogueira confidencia que tem «uma preocupação com a permanência», revela uma preocupação com a persistência subjacente aos atributos fundamentais de um mundo em permanente alteração. Em 1980, numa performance em São Paulo, preparou cuidadosamente uma porção de terra na qual espalhou exuberantes flores de papel. Depois de semear este novo canteiro, aproximou--se do público e ofereceu-lhe folhetos nos quais tinha escrito, à mão, «a ti». Por baixo desta dedicatória personalizada, dirigida a todos e a cada um individualmente, liam-se as palavras «Todo o mundo é composto de mudança», num fac-símile do verso de Luís de Camões, a partir da mais antiga edição das Rimas. As mesmas palavras foram também pintadas numa parede adjacente. Em parte como testemunho da inevitável transitoriedade das coisas, em parte sloganrevolucionário, em parte promessa de e para o futuro, o verso de Camões ecoa no espaço socializado, evocado através das ações de oferenda feitas por Carlos Nogueira – o espalhar, o oferecer –, pondo ênfase no coletivo e nas relações pessoais, como garante e salvaguarda de um mundo em permanente reconfiguração.
Pensando em relações, em conexões, até algo de tão simples como um postal pode tornar-se um desafio, sendo como é um sinal de deslocamento. Gostava que estivesses aqui, dizemos. E o que essas palavras transmitem é a triste mensagem de que eu estou aqui e tu ali. Não estás aqui. Ao mesmo tempo, o postal é um modo genuíno
e simples de assinalar a presença de um pensamento. Estou a pensar em ti. Mas, como Carlos Nogueira questionou em 1980, até que ponto esse sinal pode ser genuíno e simples, se o postal que se envia não é daqueles em que se acredita? De modo a ultrapassar o que para si era o lado inadequado da mercadoria disponível – o conteúdo insípido de imagens kitsch –, criou os seus próprios produtos. Mas em vez de partir de um completamente novo, serviu-se de postais comercialmente disponíveis e usou-os como material de colagem para as suas composições. Que poderíamos dizer destes postais? No seu conjunto são postais, mas individualmente cada um é também plural. Embora do tamanho de um postal-tipo, cada um é feito a partir de três, quatro, ou cinco tiras cortadas em postais idênticos. Para cada um dos postais são usadas as tiras idênticas, logo há repetição e, no entanto, devido à arbitrariedade dos processos de impressão em série, há diferenças na cor da tinta, ou na maneira como cada uma foi desbotando, devido à luz, durante o tempo em que o postal permaneceu na loja, no expositor, à espera de ser comprado. Isto provoca alterações de tira para tira, tendo como consequência que cada repetição seja também um deslocamento.
E à medida que os nossos olhos deslizam, dentro do mesmo postal, de tira para tira, experienciando o mesmo e, no entanto, não a mesma coisa, a nossa inquietação só aumenta se tentarmos circunscrever as nossas expectativas, relativamente ao que um postal deve dar-nos, àquilo que verdadeiramente estamos a ver. Invariavelmente, um postal oferece-nos uma vista. Sabe que não estamos onde ele está, por isso permite-nos ficar a uma certa distância e acolher a cena. Se o mar está calmo, está calmo enquanto se espraia na areia neste lugar, e se o céu está azul, o sol brilha naquele lugar, e se a relva está verde e o lago tranquilo, é noutro lugar, igualmente específico, que poderemos usufruir dessas suaves condições. Mas os postais de Carlos Nogueira dão-nos só o céu, ou simplesmente a água, ou apenas a terra. Somos levados para perto, mas para perto de quê? Não para um outro lugar específico que, de certo modo, poderia, assim, ser apenas mais um, em qualquer outro lugar. Somos, antes, levados até perto do significado de um mundo – até ao céu de onde vem a luz, e no qual se movimentam as sempre nascentes formas das nuvens, até às águas, cujas superfícies inquietas se adaptam incessantemente à cor, ao peso e à forma das coisas que nelas se refletem, e até à terra que é sempre, e inevitavelmente, o chão de todas as coisas. Não nos podemos distanciar deste mundo, porque é o único que temos. Pessoa descreve a existência de um objeto a partir da interseção de três linhas que representam, primeiramente, a matéria de que é feito, em segundo lugar a ideia que dele fazemos e de como pode ser usado e, em terceiro, o ambiente em que ele existe. É o terceiro vetor, o ambiente, que ele considera ser a alma da coisa, o mesmo acontecendo com as pessoas:
Tudo vem de fora e a mesma alma humana não é porventura mais que o raio de sol que brilha e isola do chão onde jaz o monte de estrume que é o corpo.(4)
Os postais de Carlos Nogueira oferecem a luz e o chão, através dos quais e em relação aos quais os nossos corpos socializados podem descobrir-se e singularizar-se.
A repetição alterada que vemos nos postais surge, de outras formas, no trabalho de Carlos Nogueira, através da utilização de múltiplas peças, por exemplo mosaicos hidráulicos ou tábuas sobrepostas, ou nos muitos desenhos feitos com o objetivo de serem mostrados aos pares, ou ainda nas várias placas de vidro assentes em cantoneiras de ferro que constituem parte de beyond the very edge of the earth, e que refletem repetições fragmentadas do espaço envolvente. Há também um conjunto de desenhos mais antigos, intencionalmente representativos de um começo. Fazem lembrar os exercícios dos cadernos de caligrafia dos alunos da escola primária quando aprendem a escrever – padrões de linhas constituídas por traços que se repetem subindo e descendo na diagonal. Não são letras, mas, existindo deste modo nas fronteiras da língua, transportam a força natural da marca, do gesto elemental do desenho que afirma, de imediato, a sua própria presença enquanto marca, e ao mesmo tempo transporta a promessa da expressão e da representação.
E o que expressam e representam, antes de mais, é a essência do próprio desenho – o movimento da mão, do braço e do pulso, o sentir contrastante da caneta quando a pressionamos para a frente e para trás, através da superfície do papel, a pressão variável do aparo, o agarrar solto ou firme dos dedos, o jogo de ocultar e revelar à medida que a mão, inevitavelmente, vai cobrindo a área sobre a qual está a trabalhar.
De facto, muito do que Carlos Nogueira faz pode incluir-se na sua generosa visão do que significa desenhar. A amplitude da sua definição pode ser apreendida ao considerarmos as duas sequências de painéis muraisdesenhos e cortantes para construção com chão branco a partir de dentro e a noite e branco. Ambas as séries são descritas como desenhos, embora possam igualmente ser vistas como pinturas ou esculturas. Tendo espessuras diferentes, as placas de contraplacado que formam a base das composições são, no seu todo, matéricas. A tinta disposta nessas placas, muitas vezes com fita nas margens, foi com frequência aplicada generosamente, de modo a que o bordo que se forma junto à fita permaneça quando a tinta seca e a fita é retirada. Para além disso, as placas são montadas sobre estruturas de aço de grande espessura, tão características de Carlos Nogueira, tornando impossível ignorar o estatuto de objeto que as obras possuem. No entanto, as composições – que quase podem ser vistas como um modo de marcar o desenvolvimento intuitivo de um padrão base de elementos que passam por uma série de alterações – e a série de materiais utilizados – incluindo tintas mate e brilhante (alguns restos), verniz (que, não tendo sido completamente removido, deixa uma superfície marcada por bolhas), e ainda cortantes de aço fino e ripas separadoras pintadas com grafite – dão às peças um sentido que é próprio de plantas e projetos de edifícios. Como sempre no trabalho de Carlos Nogueira, a arquitetura anda por perto. Tantos edifícios, abrindo sempre para os céus. a noite e branco, o título de uma destas sequências de desenhos, é para ele um par essencial. Nem preto e branco, nem dia e noite; esse par funde os dois opostos, através da alusão às profundas diferenças físicas e psicológicas que experimentamos na presença ou na ausência de luz. Onde há luz, o espaço existe como um ambiente a ser preenchido. Na escuridão, como Caillois nos lembra, o espaço entra em nós e nós dissolvemo-nos nele.
Do que essa palavra, desenho, fala é do grau muito significativo em que as coisas permanecem para Carlos Nogueira, se não completamente inacabadas, certamente não fixadas. A dificuldade está talvez no compromisso que se estabelece com os materiais de modo a não os fixar numa determinada forma, mas em alcançar, através desse processo de compromisso, manipulação e acordo, um estado de potência – o mesmo é dizer, não a possibilidade de uma coisa ou de outra, mas a potência pura e simples. Concordamos com Frank Stella, quando diz que é desejável que a tinta mantenha a mesma qualidade de quando estava na lata. Uma das táticas de Carlos Nogueira para conseguir realizar uma aspiração tão ambiciosa é, por vezes, a de pintar com a mão esquerda – um modo de contornar ideias feitas. É uma maneira de evitar as armadilhas da rotina dos músculos. Falando deste seu modo de trabalhar, afirma primeiramente que «a mão quer que nos esqueçamos de como se pinta», mas em seguida insiste, de forma mais veemente, «o que eu quero é que não se saiba como se pinta». Não teorizar nem interpretar. Agir. De cada vez é como se fosse uma primeira vez. Uma camisa sem bolsos, uma haste demasiado curta, um pincel na mão «errada».
«Eu tenho um vocabulário», diz Carlos Nogueira. O facto de recorrer a esse termo indica, parece-me, o caráter direto da sua atitude relativamente aos materiais e aos processos. De um vocabulário de palavras escolhemos aquelas de que necessitamos num determinado momento, e colocamo-las ao lado de outras palavras para formar frases. E à medida que as escolhemos e colocamos, sabemos perfeitamente que aquelas palavras que decidimos usar não são propriedade nossa; não as possuímos. Com alguma benevolência, podemos dizer que as tomámos de empréstimo por algum tempo; mas se fizermos um juízo mais severo, percebemos que a possibilidade de nos exprimirmos assenta inequivocamente em atos de apropriação. O vocabulário de Carlos Nogueira, como a caixa de ferramentas da linguagem, imaginada por Wittgenstein, contém elementos de várias espécies e com potencial diferente. Podemos fazer uma lista de alguns: madeira, aglomerado, cal, tinta, mosaico hidráulico, aço, cartão, pincel, vidro, caneta, tinta de escrever...(5) Nenhum deles será limitado no seu uso. Todos, esmagadoramente, são o que de mais comum existe na indústria e na construção, usados por Carlos Nogueira de acordo com o uso que ele lhes confere, mas criando, todavia, a sensação de se manter a possibilidade de voltarem à sua função primeira, se acaso tal fosse desejável. De resto, em todos os exemplos Carlos Nogueira considera esse vocabulário como um modo de convocar não apenas matéria, mas também cor. É óbvio que existe, digamos, granulado da cor que escolhe para o fabricante integrar nos mosaicos hidráulicos, diferentes em cada escultura, ou a madeira do cedro-vermelho do Canadá nas placas que revestem a casa decasa aberta com pátio, que com o tempo passam a cinzento prateado. Mas existem, de modo mais subtil, circunstâncias ocasionais, como a ferrugem numa lata, que transmitiu um matiz rosado à tinta branca que contém ou, ainda mais prosaicamente, o simples facto de um material ser apenas aquilo que é. A cal, um dos seus favoritos, oferece simultaneamente uma boa superfície e uma boa cor. A sua suavidade acolhe o olhar contemplativo, enquanto a opacidade lhe resiste; o seu branco brilha, enquanto a densidade absorve a luz e a retém.
E em qualquer lista que inclua os materiais da preferência de Carlos Nogueira, teríamos de incluir a luz. É omnipresente, brilhando a partir do chão refletor sobre o qual assenta a estrutura de tábuas de casa com esquina . a céu aberto; filtrada através dos vidros translúcidos e com formas, presentes na janela poente da «Casapella» em Worblaufen; ou refletindo-se nos vidros apoiados de nem sombra nem vento; e cintilando através das placas de vidro que constituem as camadas sobre as quais assentam casa quadrada com chão branco a partir de dentro e como uma imensa coluna de ar. Esta última obra, originalmente mostrada no Pavilhão Branco em Lisboa, encontra-se agora no jardim da Casa da Cerca em Almada. Está instalada numa elevação do terreno, de tal modo que quem se aproxima, seguindo pelo caminho que fica a um nível inferior, alinha os olhos pela base da obra. Poderá deste modo muito facilmente captar com o olhar aquela linha de luz do sol sobre a qual assenta toda a escultura, apercebendo-se assim do peso incomensurável das suas várias camadas pairando, oscilando, ali mesmo acima da terra.
(1) Martin Heidegger, «Building, dwelling, thinking», in Poetry, Language, Thought, tradução de Albert Hofstadter, Nova Iorque, Harper & Row, 1971, pp. 145 e segs.
(2) Roger Caillois, «Mimicry and legendary psychasthenia», in October, vol. 31, inverno de 1984, p. 16.
(3) Lawrence Weiner in July/August Exhibition Book, Studio International em associação com Seth Siegelaub, Londres, 1970, p. 36.
(4) Fernando Pessoa/Bernardo Soares, O Livro do Desassossego, edição de Richard Zenith, Lisboa, Assírio & Alvim, 1998, §58, p. 92.
(5) Ludwig Wittgenstein, Philosophical Investigations, tradução de G. E. M. Anscombe, Oxford, Basil Blackwell, 1978, §11, p. 6. Tradução de: Maria Etelvina Santos