Do processo à poética
por BRUNO MARCHAND
Parece tratar-se aqui de uma dificuldade própria da época:
hoje, e de momento, não há senão uma escolha possível,
e esta escolha só pode incidir sobre dois métodos igualmente
excessivos: ou supor um real inteiramente permeável à história, e «ideologizar»; ou, inversamente, supor um real finalmente impenetrável, irredutível, e, nesse caso, poetizar.
Roland Barthes, Mitologias
Entre 1954 e 1956, o filósofo e semiologista francês Roland Barthes ocupou uma coluna mensal na revista Les Lettres Nouvelles, no âmbito da qual produziu o conjunto de textos que viria a dar corpo a uma das suas mais referenciadas obras: o volume Mitologias. Correspondendo àquele que se convencionou chamar o seu período jornalístico, estes artigos eram respostas que o autor oferecia a temas da atualidade que lhe permitiamdesconstruir o modo como fenómenos aparentemente inócuos se encontravam carregados de um sentido capaz de lhes conferir um valor simbólico bem mais vasto e atuante do que a sua aparente inocuidade sugeria. Assim, do wrestling à crítica literária, dos sabões e detergentes a Charlot, do casamento ao brinquedo, do vinho tinto ao striptease, um leque absolutamente heterogéneo de temas passou sob o escrutínio de Barthes que, como quem desmonta um argumento, revelou as suas estruturas ocultas, os seus espaços ocos e os alicerces velados das suas valências discursivas e dos seus efeitos culturais.
Mais do que uma extraordinária coleção de exercícios críticos, Mitologias é um compêndio de sintomas que apontam para uma mesma enfermidade. E se por sintomas podemos entender esse conjunto de construções e de epifenómenos a que corresponde – ainda que de forma muito genérica – a ideia de mitologia, a enfermidade propriamente dita está condensada no desabafo lapidar que o texto acima descreve: essa irreparável fratura das sociedades pós-industriais, divididas entre a visão analítica e positivista do real e a sua sensualização e devolução poética. Como um correlato da sua prática escultórica, os desenhos de projeto de Carlos Nogueira são herdeiros desta fratura e da sua tensão produtiva. São obras miscigenadas e ambíguas, a um tempo rigorosas e casuais, intuitivas e racionais, mas sempre ancoradas num equilíbrio que as envia para o lugar de singularidade em que Carlos Nogueira tem inscrito toda a sua produção artística dos últimos trinta anos.
A obra em processo e o processo como obra
Tempos houve em que os desenhos de projeto de Carlos Nogueira levantariam sérias questões quanto à sua classificação e ao seu estatuto no âmbito estrito das artes visuais. Em meados dos anos 1970, altura em que o artista começou a coligir estas peças e a considerá-las como obras, o debate em torno dos limites sobre o que poderia ou não ser considerado como desenho – ou seja, como objeto que concorria ao estatuto artístico dentro de um campo disciplinar munido de uma história e de um conjunto de metodologias e procedimentos claramente identificáveis – dificilmente admitia, de forma consensual e pacífica, propostas que se assemelhassem quer a nível conceptual, quer a nível morfológico, com algumas das peças que esta exposição reúne. Mas afirmar que os debates dificilmente admitiriam estas propostas não significa que as excluiriam liminarmente. E tal não aconteceria, em grande medida, porque em meados da década de 1970 estava já em marcha a sedimentação do duplo movimento que veio a determinar que nem a identidade de um desenho está dependente do cumprimento de quaisquer prescrições metodológicas ou disciplinares, nem o seu estatuto enquanto obra está condicionado pela eventual idoneidade do conteúdo que manifesta ou do aparente estado de progresso em que se encontra.
Para o estado de coisas que acabámos de descrever contribuiu de forma muito significativa uma discretíssima exposição, hoje tida como histórica, ocorrida na School of Visual Arts, em Nova Iorque, no final de 1966. Intitulada «Working Drawings and Other Visible Things on Paper Not Necessarily Meant to Be Viewed as Art», esta exposição foi a resposta que o artista, e então professor no departamento de História da Arte, Mel Bochner, ofereceu ao desafio que a direção da escola lhe lançou para organizar a tradicional exposição de Natal. Profundamente ligado às experiências levadas a cabo por uma geração associada à chamada arte minimal, Bochner dirigiu convites a um conjunto alargado de artistas como Carl Andre, Jo Baer, Dan Flavin, Dan Graham, Eva Hesse, Donald Judd, Sol LeWitt ou Robert Smithson para cederem precisamente «desenhos de projeto ou outras coisas visíveis sobre papel, não necessariamente concebidas para serem vistas como arte»(1).
Embora a inexistência de quaisquer condições financeiras de relevo fosse um dado importante na natureza do convite, Mel Bochner tinha razões bem mais profundas para lançar um repto tão particular e tão abertamente desafiador das convenções artísticas e expositivas em voga no final dos anos 1960. Num quadro cultural fortemente dominado pela ideia de processo – fosse pela aplicação de soluções que implicam repetição e serialidade nas propostas minimalistas, fosse pela tónica posta na ação do artista e no comportamento dos materiais nas obras pós-minimais – despontava, lenta mas consistentemente, uma consciência clara sobre a importância dos estádios de desenvolvimento que antecedem e conduzem à apresentação final dos objetos artísticos. Como uma alternativa à vertiginosa descida aos fundamentos técnicos e materiais das diferentes disciplinas artísticas apregoada pelo modernismo idealista, uma importante franja dos artistas a trabalhar nesta época mostrava-se interessada em impulsionar a descida aos fundamentos da própria prática artística, em desconstruir as suas estruturas operativas, em revelar esse impulso inaugural que se convencionou chamar de conceito, e em torno do qual se cristalizou o último dos fenómenos modernos.
Um ano antes da publicação do seminal texto de Sol LeWitt, «Paragraphs on Conceptual Art», a exposição de Bochner pugnava já pela convicção de que todos os estádios que conduzem
à materialização final da obra – sejam eles «rabiscos, esboços, desenhos, obras fracassadas, modelos, estudos, pensamentos, conversas – são de interesse. Aqueles que revelam o processo de pensamento do artista são por vezes mais interessantes que o produto final»(2). Escudado no estatuto prospetivo da galeria de exposições da sva, Bochner apresentou, então, durante todo o mês de dezembro, um conjunto de obras onde se podiam ver mapas de implantação, grelhas de construção, planos de engenharia, faturas, notas de encomenda, esboços, estudos, plantas, listas, textos, organigramas ou diagramas(3). Como um atlas daquilo que o desenho contemporâneo também passou a poder ser, estas obras não só espraiavam a noção de desenho para campos até então insuspeitos, como tinham em comum três predicados que viriam a ser determinantes na substituição da ideia de desenho de projeto como instância que sinaliza uma obra em processo, pela noção de desenho de projeto como algo que cauciona o próprio processo como obra, a saber: um estatuto projetivo, uma condição transitiva
e uma estética administrativa.
1. O estatuto projetivo
Os desenhos de projeto de Carlos Nogueira não só partilham destes predicados como complexificam os seus efeitos. Como veremos mais adiante, o que separa os desenhos de Carlos Nogueira daqueles apresentados por Mel Bochner são trinta anos de energia subversiva a esvair-se por entre as brechas de uma vanguarda já demasiado institucionalizada e consciente de si mesma, bem como uma persistente busca do artista português pela instituição de um espaço de subjetividade no âmbito de uma prática tão absolutamente metódica e analítica.
Em boa verdade, muito para lá destes trinta anos, a ideia de desenho de projeto como obra de arte e como objeto autónomo é, como recordou Robert Morris no artigo «Anti-Form», uma fabricação da alta renascença(4). Naquela época, os esboços apareciam como instâncias intermédias, como objetos subsidiários, como entidades que enviavam para algo que gozava, simbólica e materialmente, de uma irrefutável superioridade: a pintura. Fruto, em grande medida, da crescente posição social do artista e da valorização do seu trabalho no plano comercial, o desenho preparativo conquistou um espaço peculiar na grelha taxonómica dos objetos artísticos: se, por um lado, nele se podia aferir a verdadeira genialidade do artista plasmada na resoluta qualidade do traço, na capacidade de síntese ou na precisão compositiva, por outro, a sua aparência vaga e indeterminada transformava-o num poderoso vórtice para a imaginação do espectador(5). Naturalmente, o conjunto de parâmetros impostos aos desenhos renascentistas difere muito daqueles que aplicamos aos desenhos contemporâneos mas, operando como um núcleo que se mantém intocado durante todos estes séculos, a capacidade sugestiva permanece como fator inalienável na experiência que desenvolvemos atualmente quando frente a desenhos de projeto. Longe da relação de precedência direta e de circunscrição gráfica que o esboço e a pintura renascentistas mantinham entre si, os desenhos de Carlos Nogueira recorrem a um conjunto bem mais lato de estratégias produtivas para garantir um outro grau de autonomia e para estabelecer o terreno fértil para a reação projetiva.
Tomando como ponto de partida alguns projetos dos anos 1970, é evidente o modo como estes se socorrem essencialmente da palavra e do diagrama para estabelecer e comunicar um território de ação artística. Muito mais que performances, obras como 99 pombas de brincar para outros tantos usadores (1973), conjunto de mesa e pintura a condizer e outros fragmentos de um discurso sobre o comum e o quotidiano (ou a primeira fruta com as primeiras chuvas) (1975-1981) ou a Camões e a ti (1980) são acontecimentos específicos(6) que preveem a interação com o público e cujas coordenadas iniciais se estabelecem através de descrições visuais e textuais. Ainda que marcados pela fluidez e pela liberdade caótica de uma urgência posta em ato, estes desenhos não deixam de transparecer uma assinalável compostura, organizando os seus elementos dentro de uma matriz gráfica (por vezes uma simples linha horizontal a definir diferentes zonas de ação e de comentário) que não só os distribui pela página, como lhes atribui um lugar na hierarquia e na mecânica performativa para a qual remete o projeto. Contudo, assim como o número de desenhos produzidos aumenta na razão da complexidade das obras que assistem, também quanto maior o número de elementos por desenho, menor a sua capacidade comunicativa e a eficácia da sua função descritiva.
Em grande parte, o fenómeno que acabámos de notar tem boas razões para acontecer. A primeira, e porventura a mais imediatamente identificável, tem que ver com o facto de encontrarmos estes desenhos estruturados em torno de uma modalidade de significação que não é a habitual para este tipo de objetos. Ao contrário do que seria expectável, estes desenhos estão bastante mais ancorados em modalidades de significação simbólica (palavras, diagramas, axonometrias) do que em modalidades de significação iconográfica. Quer isto dizer que, muito mais do que o jogo de reconhecimento de uma semelhança e da sua posterior projeção, eles pedem ao espectador uma atenção da ordem da leitura e da descodificação(7). Naturalmente, uma aproximação desta natureza transfere para o espectador o ónus da concatenação de um conjunto de informações díspares e da sua tradução numa obra que será posta em cena nesse exclusivo campo de fecunda liberdade criativa a que chamamos imaginação. Ainda que ancorada nas premissas textuais e nos indícios gráficos que Carlos Nogueira nos oferece, a experiência que estes desenhos de projeto impulsionam colhe o seu fulgor e a sua energia precisamente no que fica inexplícito, no que fica vago, indeterminado, sugestionado, e que na sua imprecisão generalizada autoriza, sem prejuízo da função artística, a ação especulativa e projetiva do espectador.
2. A condição transitiva
«Ao vivo na sua cabeça» – subtítulo de uma outra célebre exposição, desta feita comissariada por Harald Szeemann na Kunsthalle de Berna em 1969(8) – poderia servir como epíteto para o fenómeno que estes desenhos põem em marcha. Instigada pelas rasuras, pelas cesuras e pelas correções, tanto quanto pelas indicações e adendas visuais fornecidas pelo artista, a ação projetiva que levamos a cabo frente a estes desenhos implica um envolvimento crítico que oscila entre o que é tornado expresso e o que se subentende no projeto.
Se, como vimos, é através da sugestão que o processo imaginativo em que nos enredamos se desencadeia, não é possível, porém, nem desejável, relegar para segundo plano a qualidade transitiva da grande maioria dos dados que nos são fornecidos pelo artista. Mais ainda, é através do reconhecimento dessa qualidade e do envolvimento do espectador na dinâmica que dela advém que se instala a sensação de processo propriamente dita e que ela se torna produtiva.
No conjunto dos desenhos de projeto apresentado nesta exposição é possível distinguir duas modalidades bastante diferentes no que à inscrição da referida condição transitiva diz respeito. A primeira, e porventura a mais evidente, ganha substância no conjunto de marcas visuais que sinalizam o fluxo de pensamento do artista. Alcançando maior expressão em obras como estudos para beyond the very edge of the earth (1997-1998),estudo para a noite e branco (1997-2000) ou estudos para desenhos de construção com casa . e céu (2006), este corpo de marcas visuais é composto essencialmente por palavras, números, diagramas ou sinais em cuja organização se podem presumir não só as intenções do artista, mas também as hesitações, os enganos e as alterações que levou a cabo ao longo do processo. Há uma evidente sensação de temporalidade e de duração nestes desenhos de Carlos Nogueira. O seu envolvimento no processo de conceção deixa um rasto que, embora não seja passível de ser organizado pelo espectador numa sucessão linear – com um princípio, um meio e um fim perfeitamente identificáveis – não deixa de testemunhar a imersão do artista no desafio criativo. Do mesmo modo, o encontro do espectador com esse rasto produzirá uma experiência não menos imersiva, estimulante e contundente, como se a obra pudesse funcionar como a superfície que medeia uma relação especular entre o comportamento do artista e o comportamento do fruidor.
De certa forma, o mais surpreendente em toda esta situação talvez seja o facto de ela se processar essencialmente ao nível morfológico. Quer isto dizer que o nosso reconhecimento da imersão de Carlos Nogueira no momento criativo dispensa qualquer nível de informação que não a meramente visual; todo o aparato funciona ao nível da superfície, uma vez que esta é suficiente para que o espectador se situe perante o que vê num regime de absoluta generalidade.
É precisamente quando nos dispomos a descodificar e a encontrar a especificidade de algumas destas informações – sobretudo as textuais – que desvendamos a segunda modalidade da inscrição do transitivo nestes desenhos de projeto: o modo como as referidas informações remetem para estados de transformação das formas e das matérias elencadas nos distintos projetos.
Para além da inequívoca alusão ao modo transitivo contida na frase «Todo o mundo é composto de mudança» – verso camoniano que Carlos Nogueira integrou no projeto a Camões e a ti (1980) – obras como se eu pudesse dava-te um piano . ação por correio (1980), as portas do rio te estão abertas (1995-1996), a noite e branco(1997-2000), a ver (1998-2002) ou desenhos de construção com casa . e céu (2006) implicaram a produção de desenhos onde se podem ler inscrições que indicam relações materiais («branco sobre branco», «cal+textos»), estados performativos («empurram-se», «ficar quieto») marcações temporais («lento») ou ações diretas («mensagem presa a um dos fios», «construir um espaço dentro e outro do outro lado», «usar materiais comuns de produção industrial e transformá-los, dotando-os de outras cargas» ou todas as instruções presentes em paisagem(s) com vento (1983), cuja finalidade é a construção de um moinho de vento em papel). Composta numa linguagem sumária e de cariz quase didascálico, uma parte considerável destas indicações situa o espectador no âmbito lato das trocas levadasa cabo entre materiais, formas e gestos, sublinhando as metamorfoses e transfigurações que estes se impõem mutuamente. Vale a pena notar, todavia, que as trocas deste modo assinaladas não se limitam a dar conta do que ocorre ao nível externo, sendo passíveis de uma extrapolação que é, amiúde, reveladora de um conjunto bem mais subtil de transformações internas, de estratégias relacionais e de ambições intersubjetivas.
3. A estética administrativa
É curioso notar que ao crescente pendor subjetivo das inscrições textuais que encontramos nos desenhos de projeto de Carlos Nogueira corresponde uma diminuição do uso de suportes que instituem imediatamente uma ligação com práticas ligadas à comunicação e ao rigor. Não obstante, em obras como para um levantamento da paisagem . o rio (1975), paisagens de mandar (1979), gosto muito de ti . ação de rua (1980), desenho de casa(1985), uma floresta . como um rio (1993), construção com chão branco a partir de dentro (1997-1998) ou a ver . do outro lado (1998), o artista recorreu a um conjunto de instrumentos e de suportes muito específicos para a criação dos respetivos desenhos de projeto. Entre estes, encontramos folhas pautadas ou quadriculadas, fichas de leitura, papéis vegetais, acetatos, fitas-cola, corretor, esferográficas, lapiseiras, máquinas de escrever, réguas, esquadros, compassos ou agrafos – toda uma panóplia de recursos que nos habituámos a associar mais à produção, gestão e apresentação de dados do que ao conjunto de relações materiais que tradicionalmente identificamos com as obras de arte.
De facto, num primeiro olhar, parece existir nestes desenhos um deliberado bloqueio a todas as estratégias que possam conduzir ao prazer estético, no sentido tradicional do termo. Para esse efeito, muito contribui o facto de estes desenhos serem claramente dominados pelo texto e por uma aparente displicência gráfica que parece querer deixar claro que o artista está muito mais empenhado em mostrar--nos métodos do que propriamente resultados. E centrar a tónica nos métodos mais do que nos resultados significa privilegiar toda uma tradição de experiência artística que se afasta decididamente das estratégias da visualidade mais associadas a questões de gosto. Como notou Benjamin Buchloh num importante texto sobre
a sedimentação das práticas conceptuais(9), as movimentações artísticas que pretenderam ampliar o domínio do juízo estético para campos onde a visualidade se tornava absolutamente inoperativa (como era o caso das práticas conceptuais), importaram para
a esfera dos fenómenos artísticos duas condições distintas mas complementares: a linguagem legalista e a estética administrativa(10).
Embora os desenhos de Carlos Nogueira não apresentem qualquer indício da referida linguagem legalista, é inegável que o artista tenha tido cuidados especiais no que respeita ao modo como estes objetos se apresentam ao mundo. Como uma imagem fantasma que atravessa este corpo de trabalhos e que pretende caucionar, para lá de todas as dúvidas, o seu estatuto enquanto objetos artísticos, Carlos Nogueira inscreveu nos versos destas páginas um conjunto de marcas – nomeadamente carimbos, assinaturas e impressões digitais – que, embora não partilhem da radicalidade das ações de artistas como Marcel Duchamp, Piero Manzoni ou Robert Rauschenberg, não deixa de ambicionar o mesmo efeito proclamatório(11). Mas, se não se encontra aqui uma correspondência perfeita entre as ambições legalistas dos autores proto-conceptuais e as necessidades pragmáticas de Carlos Nogueira, no que respeita ao recurso a uma estética administrativa as distâncias diminuem consideravelmente. Basta pensarmos no uso que artistas como Sol LeWitt, Michael Asher, Mel Bochner, Gordon Matta-Clark, Robert Smithson, Hanne Darboven, Eva Hesse, Nancy Holt ou Lee Lozano fizeram dos instrumentos e dos suportes acima elencados para estabelecer um território de ação que, ao erodir os pressupostos estéticos tradicionais, não evitou, contudo, a sua substituição por um outro regime, desta feita caracterizado pelo rigor, pela contenção, pela lisura, pela codificação e por um acerto protocolar que sublinhava o crescente pendor imaterial do trabalho artístico e, como resumiu Jan Verwoert, glorificava a estética do burocrático(12).
Frente aos desenhos de projeto de Carlos Nogueira, sabemos que estamos a olhar para documentos. Mais que isso, sabemos que estamos a olhar para documentos bastante desprovidos de imanência material. Quer isto dizer que o que vemos, de facto,
é o trabalho, consubstanciado no desvelamento dos seus trâmites e da sua mecânica, mas não propriamente no seu produto. O produto em si – as esculturas, as instalações, as performances, os happenings – é algo para o qual somos remetidos em diferido. Naturalmente, a intangibilidade deste estado de coisas é regida por um conjunto de experiências que, como vimos acima, passam essencialmente por aptidões da ordem da leitura e da descodificação – sejam elas aplicadas ao campo estrito da competência linguística ou ao campo mais lato da competência visual. Não obstante, é muito evidente que as decisões que, a posteriori, transformaram estes documentos nos desenhos que agora encontramos sobre as paredes da galeria, não facilitam propriamente a sua receção enquanto entidades a serem lidas ou descodificadas. Pelo contrário, ao preterirem a horizontalidade que identificamos com o plano de trabalho a favor de uma verticalidade que associamos ao plano pictórico, estes desenhos impulsionam, de facto, um regime de perceção que lhes decreta um estatuto ambíguo, algures entre puros organizadores de informação e singulares composições gráficas.
Do processo à poética
Pode dizer-se, então, que os desenhos de projeto de Carlos Nogueira oscilam entre dois polos absolutamente distintos: o mapa claro e estruturado de um pensamento que se verteu sobre a página de papel, e a sofisticada composição alicerçada num conjunto de elementos visuais que reenviam para o referido universo visual do burocrático. De certo modo, encetar uma relação com um destes polos significa anular ou, pelo menos, diminuir muito consideravelmente a capacidade significativa do outro. Em todo o caso, seja qual for a opção, porquanto se mantiver o balanço pendular entre estes dois extremos, a experiência do espectador circunscreve-se a um território largamente dominado por signos que associamos à lógica, à racionalidade e à objetividade. O pendor fático e austero desta posição serviu a Carlos Nogueira, assim como aos autores das gerações pós-minimal e conceptual, para afirmar a sua prática para lá de todos os determinismos formalistas e dos constrangimentos materiais em que se encontravam ainda enredados os discursos artísticos nas décadas de 1960 e 1970. A sua radicalidade era simultaneamente um voto de confiança às expressões de vanguarda e às suas ambições de desestabilização cultural, bem como uma moção de censura à própria ideia de visualidade como motor primeiro da experiência artística.
Adotar uma posição desta natureza conduzia, naturalmente, a um desgaste muito assinalável da presença (mesmo no sentido indexical) da singularidade e da subjetividade do artista na obra de arte. Carlos Nogueira estava certamente consciente desta erosão. Mais que isso, Carlos Nogueira parece ter estado sempre apostado em criar pontes entre a herança deste sentido de ordem, de rigor e de acerto crítico e o inexorável impulso intersubjetivo que tem pautado a sua postura artística. Talvez por isso seja possível encontrar nestes desenhos de projeto uma crescente presença de textos de expressão diarística e/ou poética, inscrições que remetem para episódios da vida do artista (cujos pormenores são cuidadosamente rasurados) ou mesmo versos ou frases avulsas, pontuadas por interjeições que, a espaços, interpelam um «tu» que facilmente se toma por ser o próprio espectador.
Como um contraponto direto à rigidez matricial da própria ideia de desenho de projeto, estes textos vêm reforçar o caráter intuitivo, fortuito e intrinsecamente emocional que a obra de Carlos Nogueira não abdica de incorporar. É através deles que o artista trabalha
a mais discreta das suas vertentes artísticas, mas também aquela que mais claramente denuncia a tensão que perpassa por toda a sua prática. Porque, contrariando os termos do excerto de Barthes acima transcrito, Carlos Nogueira não parece ter querido optar entre a visão analítica e positivista do real e a sua sensualização e devolução poética. Ao invés, o seu caminho tem sido o da progressiva sofisticação da tensão que entre estas duas posições se adensa, como quem explora uma erótica, ora subtil ora monumental, no corpo multiforme de todas as coisas.
(1) Sobre a extraordinária história desta exposição, sugere-se a consulta de Mel Bochner (et al.), WDAOVTOPNNMTBVAA, Genebra, Département des affaires culturelles; Colónia, Walther Konig; Paris, Picaron Editions, 1997.
(2) Sol LeWitt, «Paragraphs on Conceptual Art», in Charles Harrison e Paul Wood, Art in Theory 1900-1990: An Anthology of Changing Ideas, Oxford, Blackwell Publishers, 2001, p. 836.
(3) Mais concretamente, a exposição era composta por quatro dossiês dispostos sobre plintos e contendo desenhos fotocopiados provenientes de vinte e oito participantes, desde artistas a engenheiros, de autores não identificados à empresa Xerox. Embora exceda o âmbito deste texto, importa notar que a inclusão de objetos vindos de áreas fora do campo artístico e que os múltiplos gestos de afastamento em relação às peças originais (nomeadamente através do recurso à fotocópia e a processos de ampliação e redução) foram outros dois pontos fundamentais na estratégia expositiva de Bochner.
(4) Cf. Robert Morris, «Antiform», in Art Forum, vol. 6, n.º 8, abril de 1968, pp. 33-35.
(5) Sobre este assunto cf. Deanna Petherbridge, The Primacy of Drawing: Histories and Theories of Practice, New Haven; Londres: Yale University Press, 2010, pp. 26-49.
(6) Resistimos a classificar estas obras como performances. Dado o seu pendor comunitário e a abertura relacional que Carlos Nogueira sempre imprimiu a projetos desta natureza, a ideia de acontecimento (como happenning) parece-nos mais acertada.
(7) Aqui seguimos as categorias estabelecidas por Charles S. Peirce na sua teoria semiótica, sendo que a opção pela palavra «descodificar» refere-se exclusivamente à ideia de que, para algumas das estratégias levadas a cabo por Carlos Nogueira – o recurso à dupla projeção ortogonal, por exemplo – é necessário que o espectador domine um determinado código para aceder à relação de significação. Cf. Charles Sanders Peirce, Semiótica, São Paulo, Perspectiva, 1977.
(8) Falamos de «When Attitudes Become Form», uma das primeiras exposições a apresentar ao público europeu um conjunto alargado de artistas a trabalhar na fronteira entre as práticas ditas pós-minimais e conceptuais.
(9) Benjamin H. D. Buchloh, «Conceptual Art 1962-1969: From the Aesthetic of Administration to the Critique of Institutions», in October, vol. 55 (inverno de 1990), pp. 105-143.
(10) Nos termos do autor: «legalistic language and an administrative style of the material presentation of the artistic object…», Op. Cit., p. 118.
(11) Falamos de obras como l.h.o.o.q. para a qual Duchamp encomendou um certificado de originalidade a um notário, dos certificados emitidos por Manzoni declarando pessoas ou partes de pessoas como obras de arte, ou do retrato telegrafado que Robert Rauschenberg fez da galerista Iris Clert.
(12) Cf. Jan Verwoert, «Why Are Conceptual Artists Painting Again? Because They Think It’s a Good Idea», publicado em 2005, acedido a 24 de maio de 2012, disponível em http://www.afterall.org/journal/issue.12/why.are.conceptual.artists.painting.again.because.